terça-feira, 30 de dezembro de 2008

O tesouro de Moisés

O Doutor Manuel dos Santos da Mata era natural da Ericeira, advogado na Casa da Suplicação e, durante alguns anos, exerceu nesta Vila o cargo de Juiz Ouvidor, nomeado pelo Conde.
Residiu em Lisboa, na Rua de S. Roque, casado com Dona Josefa Inácia dos Santos da Mata, de quem teve uma única filha, Dona Ana Bárbara, a qual casou com o Capitão-Tenente da Armada Real, Bento Freire de Carvalho e Figueiredo, natural de Coimbra.
Pouco depois de 1814, tendo falecido o advogado e a esposa, a filha e o genro entraram na posse dos bens deixados pelos falecidos.
Na Ericeira esses bens eram constituídos por uma importante casa de lavoura, composta, além da Quinta de Vale-Janeiro, de muitas terras de semeadura, vinhas, pomares, pinhais, hortas, etc.
Tinha também celeiros, adegas, lagares, abegoaria com duas e mais juntas de bois e numerosa criadagem.
No seu testamento deixou o advogado um legado, em dinheiro, à Santa Casa da Misericórdia da Ericeira, mas o genro, alegando certas razões, recusou-se a cumprir parte do legado.
Bento Freire veio residir para a Ericeira, na excelente casa de moradia que fora do sogro, casa situada na Rua do Correio (hoje Rua 5 de Outubro) e que, actualmente, pertence à família Machado, da Picanceira.
Tendo-lhe falecido a esposa, o Capitão-Tenente tinha em sua companhia, a título de governanta, uma senhora irlandesa, chamada Sara Stuart; e para lhe dirigir as lavoiras, tinha como feitor, um homem dali da Carvoeira, chamado Moisés.
Este era um homem alto, magro, de cara rapada, um pouco vesgo, modos bruscos e voz forte e áspera.
Fosse de dia ou de noite, de Verão ou de Inverno, o Moisés andava sempre armado de espingarda, trazendo a tiracolo o polvarilho e o chumbeiro, uma cabaça com vinho e um bornal contendo pão e queijo e uma casca de côco, por onde bebia o vinho da cabaça. Era este o equipamento que o feitor usava sempre, e nunca foi visto na rua sem ele, nem sem ser acompanhado por dois ou três cães ferozes e atrevidos, quiçá amestrados pelo dono na delicada arte de morder em toda a gente.
O Moisés era solteiro e vivia só, numas casas do seu amo, situadas à entrada da Rua do Alcatrão, que é actualmente o prolongamento, pelo norte, da Rua da Fonte do Cabo. Estas casas foram demolidas há alguns anos, mas ainda ali existem a casa do lagar e a adega do amo do Moisés. Na primeira está uma oficina de ferrador, e na segunda está um Teatro. As casas onde morava o Moisés tinham uma escadaria exterior, em cujos degraus de pedra se juntava às vezes a rapaziada.
Ora uma das coisas com que o Moisés mais embirrava era com os rapazes; e por isso sucedia que, ao voltar às vezes inesperadamente a casa e encontrando a tal escadaria apinhada de garotos, o Moisés enfurecia-se e, coadjuvado pelos seus cães, que arremetiam, distribuía coronhadas a esmo; e fazendo ouvir a sua voz forte e sonora de trombone, invocava aos berros S. Sebastião, pedindo-lhe que mandasse uma boa camada de bexigas que levassem aquela cambada toda. E, entrando em casa furioso, batia estrondosamente com a porta, enquanto os seus cães perseguiam, não menos enfurecidos, os garotos que fugiam espavoridos pela rua fora.
Nestas ocasiões, a tia Pulgôa, que era uma velha que morava ali perto, benzia-se horrorizada, acendia as velas do seu oratório e rezava a Magnificat como em dia de trovoada solene.
Imitando o amo, o Moisés não se confessava nem ia à missa; e, como Bento Freire fosse partidário acérrimo do Sr. Dom Pedro, e por conseguinte figadal inimigo do Sr. Dom Miguel, amo e criado, entre a população da Vila, católica e lealista, gozavam fama de malhados, ateus e pedreiros livres.
Além de tudo isto, porém, havia ainda uma coisa a meu ver gravíssima. Segundo certificavam algumas pessoas bem informadas, o Moisés tinha pacto com o Diabo.
Parece que por vezes, a altas horas da noite, se viam luzir através das fendas da porta e da janela, umas certas labaredas vermelhas indicativas de diabólicas conjuras; e a tia Pulgôa afirmava que nessas ocasiões cheirava por ali a pez e a enxofre que tresandava, não ignorando ela a grande importância que têm aqueles dois ingredientes nas operações do laboratório químico de Satanás.
Falecendo, Bento Freire deixou os bens aos seus parentes de Coimbra e o usufruto vitalício deles à irlandesa Dona Sara.
O Moisés ficou exercendo o cargo de feitor, e parece que o amo o contemplara no testamento com algumas centenas de cruzados.
Este pecúlio, junto ao que ele certamente acumulara durante anos, pois que era homem parco e frugal e, segundo as vizinhas diziam, nunca comia comida feita ao lume, grangeara-lhe fama de ter dinheiro enterrado.
Um velho criado da casa, despedido por ele e que andava a mendigar,dera maior curso ao boato afirmando que o Moisés tinha grossa maquia enterrada debaixo do peso de um dos lagares da adega do amo; e a voz pública dizia ainda que o feitor estava de posse de uma grande quantia de dinheiro que pertencia a um irmão dele, que havia ido para o Brasil.
Uma ocasião o Moisés dirigiu-se a uma loja e pediu ao lojista que lhe guardasse uns objectos que lhe entregou.
Eram duas caixas de lata, redondas, de um palmo de diâmetro. Estas caixas tinham as tampas toscamente soldadas e pesavam extraordinariamente. O lojista cedeu ao pedido e guardou as caixas.
Passados uns três ou quatro anos o Moisés foi reclamar o depósito. O lojista prontamente lhe entregou, recebendo do feitor muitos agradecimentos por se ter encarregado dele.
Convém dizer agora aqui as explicações que o lojista me deu acerca dos pactos diabólicos do Moisés.
Conjecturava o lojista que o Moisés havia acumulado nas caixas, não só o legado do amo, como também o produto das suas economias; e, não querendo fazer soldar as tampas ds caixas por um operário competente, a fim de não dar a conhecer o seu segredo, resolvera-se ele mesmo a fazer aquele trabalho. Ora o Moisés não tendo conhecimento algum do ofício de latoeiro, teria de fazer vários ensaios e experiências, até conseguir soldar toscamente, as tampas das caixas.
Daí os fogachos noturnos e o cheiro a pez e a enxofre das soldaduras, que tanto aterrorizavam a tia Pulgôa. O que o lojista não me soube dizer, foi o motivo que levou o Moisés a fazê-lo depositário das caixas. Isto constitui um segredo que o feitor levou consigo para a sepultura.
Rodaram os anos e o Moisés foi vivendo sempre só, áspero e taciturno, exercendo o seu cargo de feitor, sob as ordens da usufrutuária irlandesa, não largando nunca o seu antigo equipamento, os seus cães e a sua velha espingarda, a qual, pelo uso contínuo de ele a trazer sobre o ombro, já tinha a madeira gasta, a ponto de se ver o ferro do cano através de um buraco produzido pelo atrito, contínuo sobre o ombro.
Um dia, depois de 70 anos de uma saúde de ferro, o Moisés adoeceu, e como detestava médicos, padres e a gente da justiça, tanto como detestava os rapazes, recusou-se a receber médico, padre e tabelião.
- Se um dia estiver doente, dizia ele por vezes, não quero ver à minha beira nem médicos, nem padres, nem justiças.
Nesta ordem de idéias recusou médico, recusou medicamentos, recusou tudo e ficou só. Só com os seus gatos e os seus cães.
Passados poucos dias foram dar com ele morto, deitado na sua cama, tendo os seus dois gatos enroscados à cabeceira, um de cada lado, e os cães deitados sobre os pés.
A irlandesa que então vivia em Lisboa, donde vinha, por vezes, passar temporadas na Ericeira, faltando-lhe o velho feitor, arrendou as propriedades a várias pessoas.
Viveu ainda alguns anos a Dona Sara em Lisboa, em companhia de uma criada chamada Clara, que era irmã do Moisés; mas assim que a irlandesa faleceu, os parentes de Bento Freire vieram logo de Coimbra à Ericeira, dividiram entre si os bens e venderam-nos a diferentes pessoas, desfazendo-se assim a importante casa que fora do Dr. Manuel dos Santos da Mata.
Passados alguns anos, na casa onde vivera e morrera o Moisés, morava um pedreiro em companhia de uma irmã. Eram ambos solteiros e muito pobres.
O reumático, ou um desastre, estropiou uma perna ao pedreiro que, por tal motivo, teve de deixar o ofício e abriu uma taberna nos baixos da casa.
Passado pouco tempo, a irmã do pedreiro adquiriu por compra, a casa onde morava com o irmão, e este adquiriu uma outra casa na mesma rua, e para lá transferiu a taberna.
A nova proprietária da casa de morada do Moisés casou com um cocheiro que, em Sintra, montou casa de alquilador.
Estes factos levaram a voz pública a dizer que o pedreiro e a irmã haviam descoberto o tesouro do Moisés. Eles porém negavam, alegando que as compras dos prédios haviam sido feitas com o produto das suas economias.
Nestas condições se foi passando o tempo, o caso esqueceu, e hoje já ninguém fala nele.

"Tia Maria Àsquinha"
Jaime Lobo e Silva - Dezembro de 1915

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