segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Ti Maria Ásquinha

Aí pelo último decénio do século XIX, numa pequena casa térrea na Travessa do Estrela, defronte da farmácia Galrão, morava uma velha de mais de 70 anos. Era a tia Maria Ásquinha.
Muito pobre mas muito asseadinha, miudinha, baixa, rosto sardento, e com uns olhos parados e inexpressivos que lhe davam o aspecto de aparvatada.
Mas não era nada parva a tia Ásquinha, vivia de fazer meias de lã para os marítimos, de recados e de esmolas que lhe davam, sendo muito estimada, não só das pessoas que lhe aproveitavam os serviços, como geralmente, de todos os que a conheciam como boa mulher e muito sossegada.
Um dia de Inverno, aí por 1891 ou 93, a tia Ásquinha foi a uma padaria e comprou um pão de quilo, em massa. Trouxe-o para a sua casa e, com um pouco de azeite e uma quarta de açúcar, fabricou uma boa travessa de filhoses, que colocou em cima da sua banca de cabeceira. Em seguida fechou à chave a sua porta de postigo, encheu de rapé a sua caixa redonda, de lata, e meteu-se na sua cama.
Passaram dois ou três dias, e a falta da tia Ásquinha começou a ser notada pela vizinhança.
Estará morta, não estará morta, muitos comentários, etc. etc. e vá de bater fortemente à porta da casa da velha e chamar: Ó tia Ásquinha! Ó tia Ásquinha! Ó tia Maria!
Nada; ninguém respondia; o silêncio era absoluto. Toca de prevenir as autoridades. Vieram Regedor e Juiz da Paz com escrivães e mais acólitos. Depois de interrogada a vizinhança e de se obter informações, foram renovadas as fortes pancadas na porta e os brados, mas lá dentro continuava o silêncio.
Não há que ver, está morta. Deliberaram as autoridades mandar arrombar a porta. Veio um carpinteiro, mas a fechadura da porta da Ásquinha não era coisa assim de pouco mais ou menos, pelo que o artífice teve que martelar muito e forte, antes que conseguisse franquear a entrada.
Aberta finalmente a porta, o mulherio agrupou-se em volta, na rua, e as autoridades entraram.
Na casa de entrada, pavimentada a junco, tudo muito arrumado e muito limpo. Penetraram em seguida no quarto ao lado, alumiado pela escassa luz de uma pequena janela e olhando, viram a travessa de filhoses já meio comsumidas, em cima da banca de cabeceira, e a tia Ásquinha muito bem deitada na sua cama, fitando todos com os seus olhos parados e inexpressivos, e que na sua voz calma, serena e muito pausada, exclamou: Ora louvado seja Nosso Senhor para sempre; nem já uma pessoa pode estar sossegada em sua casa.
"Tia Maria Àsquinha"
Jaime Lobo e Silva, Outubro de 1932

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