Aí pelo último decénio do século XIX, numa pequena casa térrea na Travessa do Estrela, defronte da farmácia Galrão, morava uma velha de mais de 70 anos. Era a tia Maria Ásquinha.
Muito pobre mas muito asseadinha, miudinha, baixa, rosto sardento, e com uns olhos parados e inexpressivos que lhe davam o aspecto de aparvatada.
Mas não era nada parva a tia Ásquinha, vivia de fazer meias de lã para os marítimos, de recados e de esmolas que lhe davam, sendo muito estimada, não só das pessoas que lhe aproveitavam os serviços, como geralmente, de todos os que a conheciam como boa mulher e muito sossegada.
Um dia de Inverno, aí por 1891 ou 93, a tia Ásquinha foi a uma padaria e comprou um pão de quilo, em massa. Trouxe-o para a sua casa e, com um pouco de azeite e uma quarta de açúcar, fabricou uma boa travessa de filhoses, que colocou em cima da sua banca de cabeceira. Em seguida fechou à chave a sua porta de postigo, encheu de rapé a sua caixa redonda, de lata, e meteu-se na sua cama.
Passaram dois ou três dias, e a falta da tia Ásquinha começou a ser notada pela vizinhança.
Estará morta, não estará morta, muitos comentários, etc. etc. e vá de bater fortemente à porta da casa da velha e chamar: Ó tia Ásquinha! Ó tia Ásquinha! Ó tia Maria!
Nada; ninguém respondia; o silêncio era absoluto. Toca de prevenir as autoridades. Vieram Regedor e Juiz da Paz com escrivães e mais acólitos. Depois de interrogada a vizinhança e de se obter informações, foram renovadas as fortes pancadas na porta e os brados, mas lá dentro continuava o silêncio.
Não há que ver, está morta. Deliberaram as autoridades mandar arrombar a porta. Veio um carpinteiro, mas a fechadura da porta da Ásquinha não era coisa assim de pouco mais ou menos, pelo que o artífice teve que martelar muito e forte, antes que conseguisse franquear a entrada.
Aberta finalmente a porta, o mulherio agrupou-se em volta, na rua, e as autoridades entraram.
Na casa de entrada, pavimentada a junco, tudo muito arrumado e muito limpo. Penetraram em seguida no quarto ao lado, alumiado pela escassa luz de uma pequena janela e olhando, viram a travessa de filhoses já meio comsumidas, em cima da banca de cabeceira, e a tia Ásquinha muito bem deitada na sua cama, fitando todos com os seus olhos parados e inexpressivos, e que na sua voz calma, serena e muito pausada, exclamou: Ora louvado seja Nosso Senhor para sempre; nem já uma pessoa pode estar sossegada em sua casa.
"Tia Maria Àsquinha"
Jaime Lobo e Silva, Outubro de 1932
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