segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O Carapêta

A tia Carapêta era uma mulher viúva que morava no Bairro da Fontainha, com dois filhos. O mais velho, pouco depois da morte do pai, embarcou para o Brasil, assentou praça na Armada Brasileira, foi subindo postos, chegou ao de Capitão-de-Mar-e-Guerra, e até foi mais tarde Senador do Império.
Não se sabe o nome deste homem, mas diziam muitos marítimos ericeirenses que o conheceram no Brasil, e alguns oficiais da marinha mercante que por vezes o visitavam na sua luxuosa chácara que possuía numa das ilhas de Guanabara, que levava vida de grande senhor, servido por numerosos escravos e onde recebia principescamente os patrícios.
O outro filho da Carapêta, conhecido pela mesma alcunha da mãe, vivia com esta, que contraíu segundas núpcias com um pescador chamado Manuel Regalão. Este era um homem dos seus quarenta anos, forte e hercúleo, de modos ferozes e muito bruto, que tratava a mulher e o enteado, o pior possível.
Um dia o Regalão foi para a pesca no seu pequeno barco e levou consigo, como de costume, o enteado.
Chegando o barco defronte da Praia do Algodio, o Regalão disse ao rapaz que se lançasse à água e viesse para terra.
O pequeno Carapêta, apesar de saber nadar como um peixe, hesitou em cumprir a ordem do padrasto.
Este, então, puxou de uma enorme faca de que andava sempre armado e disse ao rapaz que lhe tirava as tripas se não lhe obedecesse.
Em vista de tal ameaça, o rapaz atirou-se ao mar e nadou para a praia. Chegado a casa contou o facto, que provocou enorme e justificada indignação em todo o Bairro da Fontainha; mas ninguém estranhou, pois todos conheciam as excêntricas brutalidades do Regalão.
Pela tarde, o tempo que estava explêndido, começou a mudar rapidamente e levantou-se grande tempestade no mar.
Recolheram apressadamente, todos os barcos que andavam à pesca, mas o do Regalão não apareceu. Continuou a tempestade por dias e todos davam o Regalão como morto.
Na madrugada do dia 1 de Abril de 1864, dois velhos pescadores foram correr a costa, antigo costume que ainda hoje pervalece, pois em seguida às grandes levas de mar, este arroja muitos e variados objectos que os pescadores recolhem, às escondidas da Guarda Fiscal.
Chegando os dois velhotes para lá da Praia de S. Sebastião, ainda com escuro, viram entalado entre duas rochas, o corpo do Manuel Regalão, completamente nu.
Horrorizados, voltaram apressadamente para a Vila, a dar parte do achado.
Já dia, foram as autoridades levantar o cadáver e verificaram que o Regalão, em completo estado de nudez, trazia cingido aos rins um forte cinto de couro e que, no forro deste cinto, se encontravam 42 libras em ouro.
Foi caso para dar os parabéns à Carapêta e ao filho, pois viram-se livres do brutamontes, e remediados com a inesperada herança.
Passados tempos, o Bairro da Fontainha andava aterrado.!!!
Era o caso que o Regalão, transformado num enorme cão preto, andava de noite, aos saltos por cima dos telhados das casas dos pescadores, quebrando-lhes as telhas, e levando o seu atrevimento ao ponto de espreitar pelos postigos, à hora da ceia.
Ouviam o forte ladrar e olhando para o postigo, viam a larga cara do Regalão, de barbas hirsutas, em cabeça de cão preto. Um horror.!
Tempos andados, a tia Carapêta deliberou mandar adaptar aos pés do filho umas grandes botas que haviam sido do Regalão.
Foi com o rapaz a casa do João Pataco, sapateiro, que morava na Rua de Baixo. Explicou ao mestre o que desejava, e o Pataco mandou ao rapaz que calçasse uma das botas para ver o que deveria fazer.
Mal o rapaz acabou de enfiar a bota no pé, caíu redondamente com um ataque, e começou a dizer coisas estapafúrdias e incoerentes, imitando os gestos e a voz do padrasto. Juntou-se bastante mulherio e logo ali a coisa ficou explicada: era o espírito do Regalão que se metera no corpo do rapaz; não havia mais que ver.
Mas então não haveria modo de se verem livres de tal peste, de uma vez para sempre? Ora essa! Havia sim senhor. Lá estava o Padre Capelão de Santa Susana, que era um barra para essas coisas.
Toca de mandar o Carapêta à consulta do Padre, acompanhado pelo célebre Arnaldo, marinheiro astuto e valente que, apesar de ter pouco mais de 20 anos, já havia navegado em todos os mares do globo.
Foram. O Padre Capelão de Santa Susana viu e ouviu, e disse-lhes que aquilo não era nada; que voltassem para casa, tendo apenas o cuidado de não regressarem pelo caminho por onde tinham vindo.
Obedeceram os rapazes e voltaram por caminho diferente do da ida; e quando iam a entrar na Vila, junto à Fonte do Cabo, o Carapêta caíu com um dos costumados ataques. Correu logo o mulherio que estava na Fonte, e o Carapêta, imitando a voz do padrasto, começou a dizer: "Eu não entrei em casa do Padre; fiquei cá fora, poisado numa moiteirinha de tojo, mas ouvi muito bem o Padre dizer que não viessem pelo mesmo caminho."
Coitadinho! Exclamavam as mulheres, aquele malvado não o largava.
Aquilo era uma desgraça. O Carapêta não podia andar embarcado nas rascas, porque o Regalão já por vezes o tinha atirado dos mastros e das vergas para o convés, onde o rapaz ficava estirado, sem sentidos, a deitar fumo pela boca, como uma chaminé.
Por estas e por outras, já nenhum Mestre de rasca queria o Carapêta a bordo do seu barco.
A mãe escreveu ao outro filho contando-lhe a desgraça do irmão. O oficial da marinha brasileira e depois Senador, mandou ir o Carapêta para o Brasil.
Parece que o Regalão, que nunca passou de pescador da costa, teve medo da viagem e não acompanhou o enteado às terras de Santa Cruz.
À sombra do irmão, o Carapêta por lá governou a sua vida.
Nenhum deles voltou mais à Ericeira, e ambos por lá morreram.

"Tia Maria Àsquinha"
Jaime Lobo e Silva
Outubro de 1932

1446

23 de Julho de 1446
O Arcebispo de Lisboa, Dom Pedro de Noronha, em visita pastoral, concedeu autorização aos moradores da Ericeira , a pedido destes, para terem pia baptismal na sua Capela de S. Pedro, não obstante algumas excusações apresentadas pelos beneficiados da visinha Igreja de Santo André, as quais foram, pelo Arcebispo, julgadas frívolas e não de receber.
"Anais da Vila da Ericeira", jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

1436

12 de Junho de 1436
El Rei Dom Duarte confirmou a partilha dos bens entre Dona Beatriz e sua irmã Dona Filipa, cabendo a Ericeira a Dona Filipa, que casou com Luís Álvares de Sousa, 3º Senhor de Bastião e que foi provedor da Fazenda na cidade do Porto. Deste casamento nasceu Fernão Martins de Sousa, que casou com Dona Joana Nogueira, filha de Dom João Afonso de Brito. Destes nasceu Dom João Fernandes de Sousa, que casou com Dona Isabel de Brito, filha do 1º Visconde de Vila Nova de Cerveira e Alcaide-Mor de Ponte de Lima.
Este Dom João Fernandes de Sousa foi donatário da Ericeira, desde os fins do século XV até depois do primeiro quartel do século XVI.
- Apontamento
Neste Dom João Fernandes de Sousa perde-se a sequência segura da ordem dos donatários da Vila. A família continua e é numerosa, mas a parte documental conhecida não permite ajuizar qual a linha dos possuidores do senhorio.
É este um embaraço grande que surge, porquanto vários escritores se referem a uma doação feita por Dom Manuel a seu filho, o Infante Dom Luiz, do senhorio da Ericeira. Acrescentam que o Infante deixou a Vila a seu filho Dom António, Prior do Crato, a quem Filipe I a confiscou, cedendo-a depois, em pagamento de uma dívida, a Luiz Alvares de Azevedo. Este deixou a uma sua filha que era freira em Odivelas, e a Abadessa daquele convento a vendeu por 8.000 cruzados a Dom Diogo de Menezes, que foi o 1º Conde da Ericeira.
Nesta sequência o embaraço nasce, principalmente, do facto de serem os Sousas os senhores donatários da Ericeira numa época em que, segundo o dizer de vários escritores a Vila pertencia ao Infante Dom Luiz.
Até à data (1932) e à face de documentos, não foi possível esclarecer este assunto.
"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

1425

1425

Dona Beatriz e sua irmã Dona Filipa fizeram citar o padrasto Dom Afonso Vasques de Sousa, para a partilha dos bens deixados por sua mãe, Dona Leonor Lopes, seguindo-se nesta partilha uma grande demanda.
"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

1397

1397

Por morte de Fernão Martins Coutinho ficaram duas filhas: Dona Beatriz e Dona Filipa. A mãe destas, Dona Leonor Lopes, passou as segundas núpcias com Dom Afonso Vasques de Sousa, o qual, por morte de sua mulher, entrou na posse da Ericeira.
"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Chouriço doce

Chouriço doce à moda da Ericeira

- q. b. Sangue de porco
- q. b. Farinha de trigo
- q. b. Canela em pó
- q. b. Erva doce
- q. b. Açucar

1 - Misturar o sangue de porco com um pouco de água quente, farinha de trigo, canela, erva doce e açucar q. b.
2 - Enche-se a tripa de porco depois de bem lavada, com a massa obtida. A dimensão do chouriço varia consoante aquilo que se pretenda.
3 - Atado, coze-se em água, após o que se põe ao fumeiro.

Uma vez curado, serve-se frito às rodelas.
É de lamber os dedos!

Caneja de infundice

Caneja de Infundice da Ericeira
Raridade Gastronómica da Ericeira

Nota: A caneja, também designada por "pata roxa" ou "pinta roxa", é um peixe parecido com um pequeno tubarão com o qual se confecciona na Ericeira um petisco único no país e não aconselhável a palatos sensíveis, constituindo assim uma raridade gastronómica.
A dimensão ideal da caneja ronda os 60 cm. Tira-se a pele da caneja, corta-se em postas presas ou ligadas pelas barrigas ou ventrejas, lavando-se (de preferência com água do mar limpa), salpicando-se com um pouco de sal, embrulhando-se numa serapilheira (com trapos brancos entalados nos cortes das postas) e colocando-se a curtir em sitio escuro e fresco durante cerca de 8 a 15 dias (de preferência entre Outubro e Março).
Coze-se em água com sal. É acompanhada com batata cozida com pele, cortada ao meio e temperada com azeite. Quando bem curtido, o peixe apresenta reflexos de madrepérola. O azeite torna-se branco em contacto com a caneja cozida e esta exala um acentuado travo amoniacal que provoca a oclusão das fossas nasais no céu da boca.
Acompanha-se com vinho tinto, o qual, por pior qualidade que tenha, fica com um sabor adocicado como se se tratasse de um vinho adamado.

Bacalhau à moda da Ericeira

Bacalhau à Moda da Ericeira
Especialidade da Ericeira

Depois de demolhado, leva-se o bacalhau ao lume a cozer com nabo, pimenta e estragão.
Uma vez cozido, desfaz-se às lascas e salteia-se em manteiga até alourar.
Mistura-se com batata e ovo cozido, cortados às rodelas, juntando-se-lhe um molho assim preparado: leva-se manteiga com farinha ao lume, numa frigideira, mexendo sempre; assim que a farinha começa a alourar, adiciona-se leite quente em quantidade suficiente para impedir que o creme se torne espesso, e acrescentam-se polpa de tomate e natas; mistura-se com colher de pau e vai a lume brando para apurar. Serve-se polvilhado com salsa picada.

Cantigas das crianças


Borboleta
(Poemas recolhidos de Joana Alves)

I
Borboleta, borboleta
Borboleta, que linda vida
Que a borboleta tem
Passa a vida arregalada
Sim fazer mal a ninguém.

II
Corre, corre, borboleta,
Que eu vou passando
Que eu vou ao claustro, para te ver
Eu te assubi ao teu destino
Ai que lindo que há-de ser.



Olha o Mar
(pelas crianças da 4ª classe)

Olha o mar, olha o mar
Olha o mar como é direito
Canta e pula satisfeito
Parece que anda contente.

Às vezes calha matreiro
Que dá o pãozinho à gente.

Na labuta desta vida
Como é rude o seu penar
Até já dá por vencida
A própria força do mar.
"Cancioneiro Regional da Ericeira"
2000

Fonte de S. Sebastião

Esta fonte da Ericeira situa-se no extremo norte da Vila, Junto à ermida de S. Sebastião e a meia descida para a praia com o mesmo nome. Por detrás da ermida, virada a norte, tem uma larga escadaria em pedra de calçada que lhe dá acesso. No fim do primeiro lanço, chegamos a um pequeno patamar e à nossa direita encontramos a fonte actual, sobranceira ao mar e rodeada por bancos de pedra.
Esta velha fonte de água potável, um pouco salobra, tem a particularidade de ser mais fresca de verão, ao contrário dos dias frios de inverno, em que nos parece mais tépida.
A construção desta fonte deverá ser da mesma época da ermida de S. Sebastião, que já existia no século XVII: "No ano de 1643, no Livro das Visitações, há uma referência à Confraria de S. Sebastião". E ainda alguns anos mais tarde: "No ano de 1678, data da fundação da Misericórdia da Ericeira, esta confraria já devia ser antiga, em virtude de na escritura de compromisso, assinada entre o fundador desta instituição e os mestres das embarcações, se fazer mençao às tumbas das irmandades de S. Pedro e de S. Sebastião, em que se hão-de extinguir e ficar sómente a da Casa da Misericórdia."

A existência no século XVII, destes confrades do Santo orago desta ermida, dá-nos a garantia de pelo menos algumas reuniões durante o ano. Também neste mesmo século, o acrescentamento da sacristia e de uma pequena casa, incrustadas na parte norte do hexágono original desta capela, leva-nos a deduzir que esta Confraria teve necessidade de maior espaço coberto para essas reuniões. É normal que daí venha o aproveitamento das águas desta fonte, que vertiam livremente pelas arribas, por estes Confrades, os quais, ao frequentarem estes lugares, tinham a necessidade de saciar a sua sede. O próprio Jaime Lobo e Silva relata-nos: "A 5 de Julho de 1841, foi concertada a antiga Fonte de S. Sebastião."
Se nesta data, que mestre Jaime nos dá, a fonte já era antiga, isso dá-nos a garantia de pelo menos, vir do século XVIII. No entanto, julga-se ser muito anterior. Remonta talvez aos princípios do século XVII.
Não é de pôr de parte a hipótese de esta ermida ter tido origem em época árabe como morabito; pequeno templo de culto islâmico, igual a muitos outros espalhados pelo território e que ainda mantêm as características originais, tendo sido adaptada para uso cristão.
O padre Carvalho da Costa no seu livro "Corografia Portuguesa", edição do princípio do século XVIII (1702) diz o seguinte: "Há nesta vila da Ericeira três fontes perenes." É possível que se referisse às seguintes fontes: Fonte da Lua (na calçada da Ribas e que nessa altura levaria ainda alguma água), Fonte do Cabo e Fonte de S. Sebastião.
A Ericeira teve mais algumas fontes, mas todas elas de construção posterior à data da edição deste livro do padre Carvalho da Costa. Resta, segundo documentação existente, uma outra fonte, se assim a podemos considerar: as águas de Santa Marta.
Pouco mais se sabe sobre esta fonte, apenas uma referência dada por Jaime Lobo e Silva: "Já durante o ano de 1911, o Sr. Hermano Franco de Matos, por sua conta, manda concertar as escadas do Largo de S. Sebastião, que dão acesso à fonte e construir as que, da fonte, descem para a praia".

João Bonifácio

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O culto das águas

( Árula consagrada por Atilia Amoena à(s) fonte(s) e conservada no Museu da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira )
A veneração pagã das fontes na Ericeira

"O culto das águas - e, em particular, o das fontes consideradas curativas, dos poços termais, das salinas, etc. - apresenta uma continuidade impressionante. Nenhuma revolução religiosa pôde aboli-lo. Alimentado pela devoção popular, o culto das águas acabou por ser tolerado até mesmo pelo cristianismo, depois das perseguições infrutíferas da Idade Média. A continuidade cultural estende-se, por vezes, desde o Neolítico até aos nossos dias."
(Tratado de História das Religiões, Mircea Eliade, Lisboa, Edições Asa, 1994, p.257)

Conhecem-se alguns testemunhos da prática, em território ericeirense, do culto pagão das águas, ou mais propriamente da veneração das fontes, que tinha lugar de destaque na tradição religiosa romana bem como na de outros povos que se instalaram na Península Ibérica.
Remonta ao século II da era cristã a árula romana descoberta em 1947, quando se procedia a trabalhos de remoção na zona norte do antigo casarão da Armação, que dava para a Travessa da Misericórdia e que depois foi estância de madeiras.
Este pequeno altar, em pedra-mármore, que pode ser admirado no Museu da Misericórdia da Ericeira, é consagrado por Atilia Amoena, filha de Publius (ou Publicius) à fonte (ou às fontes), consoante as leituras da sua epígrafe. Desconhece-se o local da sua primitiva implantação, embora José Cardim Ribeiro, Manuel Gandra e outros admitam estar esta pedra votiva relacionada com o período sacroterapêutico da história das Águas de Santa Marta. Não seria de regeitar - segundo esta tese - a identificação da árula com "uma boa pedra" encontrada em 1484, nas escavações efectuadas num terreno situado perto do actual local de Santa Marta, e reclamada pelos anteriores proprietários como "muito pertencente para o altar" da capela a construir na vizinhança das nascentes medicinais.
Durante o decorrer dos séculos, ter-se-á perdido o rasto a este monólito, desconhecendo-se as dimensões e aspecto, e se chegou a ser usado no altar da primitiva ermida de Santa Marta.

Outro documento, respeita à veneração, na Ericeira, ainda no século XVII, ao génio, ou espírito divino residente nas nascentes de água. Em 5 de Outubro de 1659, o Visitador Eclesiástico, Dr. João Gomes Godinho, proibiu o costume de muitas pessoas irem às fontes, no primeiro domingo de Maio, e nelas fazerem ofertas de pão, trigo e outros frutos da terra, "o que tem ressaibos das superstições antigas dos gentios", e porque "as ofertas, adorações e venerações se devem somente a Deus nosso Senhor e a seus Santos". Esta interdição abrangia não só "o dito dia de Maio", como outro qualquer, e era extensivo a fontes, rios e outra qualquer parte, que não fosse das aprovadas pela Igreja.
"Memória das Águas"
Sebastião Diniz - 1997

1393

2 de Março de 1393

Dom Lopo Dias de Sousa, Grão-Mestre da Ordem de Cristo e Senhor da Ericeira, fez doação da Vila a sua filha bastarda, Dona Leonor Lopes, que havia pouco tempo casado com Fernão Martins Coutinho.
"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

Ainda Dom Lopo

A 24.4.1386 D. João I, «veendo e consirando como em esta guerra que auemos tam aficada com aquel que se chama Rey de castella Recebemos mujto serujço do castello d almourel pellas gentes que hi stauam e stam do muj honrrado barom dom frey Lopo diaz de Souza meestre da cauallaria da ordem de christos cujo o dicto castello he», e «querendo nos galardoar ao dicto meestre e a sua ordem», doa-lhe por honra o dito castelo e as terras que vão «des hu chamam a collada do collo d almourel ataa o penedo de aiffa».

Diz Fernão Lopes que D. Lopo foi nomeado mestre da Ordem de Cristo aos 12 anos de idade por sua tia a rainha D. Leonor Telles. Tendo o anterior mestre falecido em 1381, D. Lopo teria assim nascido em 1368/9. Mas seu pai já tinha falecido 1365 (teria 29 anos de idade), antes de 17 de Abril, como se refere na doação desta data da Ericeira a sua irmã D. Branca de Souza. Logo, D. Lopo não pode ter nascido depois de 1365, mesmo se foi um filho póstumo, o que realmente deve ter acontecido, ficando portanto ao cuidado de seu tia a rainha D. Leonor quando a mãe foi assassinada em 1379, teria D. Lopo 14 anos de idade. Portanto, em 1381 tinha no mínimo 16 anos, a não 12 como diz Fernão Lopes, embora nada impeça que a decisão de suceder no mestrado tenha sido tomada quando ele fez 12 anos, ainda o mestre anterior estava vivo.
Como em 1420 já era mestre o infante D. Henrique, D. Lopo faleceu necessariamente antes desta data. O seu túmulo original, em Tomar, armoriado com o escudo esquartelado dito dos Souza de Arronches e com a sua estátua jacente, foi depois mandado trasladar por D. João III para outro local na mesma igreja, sem a estátua e com nova lápide, onde se diz que D. Lopo faleceu a 9.2.1435. Presumindo que o dia e mês foram bem copiados, houve necessariamente erro no ano. Mesmo que fosse da era de César, daria 1397, data impossível, como bem salienta Braamcamp, pois D. Lopo esteve na tomada de Ceuta (1415). A provável data da morte de D. Lopo seria antes 9.2.1419, portanto com cerca de 54 anos de idade. Diz o Livro de Linhagens do Séc. XVI que D. Lopo casou com Maria Ribeiro, a qual «jaz em Pombal e ouve despemcação do Papa para a receber». Sabe-se que Roma não deixou D. Lopo tomar posse como mestre devido à pouca idade, pelo que foi substituído interinamente até à nomeação oficial em 1394, pelo Papa Bonifácio IX, contaria já 29 anos de idade. A questão que se põe é a de saber se D. Lopo obteve ou não a tal autorização especial do Papa para casar. Se assim foi, o que provavelmente só se saberá nos impenetráveis e infindáveis arquivos do Vaticano, é de crer que esse casamento se realizasse com a mulher de quem já tinha filhos. E nada mais natural, portanto, do que essa mulher ser a Leonor Ribeiro (e não Maria) documentada como mãe, sendo solteira, na legitimação de Diogo, Lopo e D. Maria. O que, de qualquer forma, implica que a autorização e o casamento sejam posteriores a 1398, data da referida legitimação. Com esse alegado casamento, não surgiu a necessidade de legitimar os filhos posteriores. Teríamos, assim, que D. Lopo obteve autorização para regularizar a sua situação com a mulher com quem vivia e de quem já tinha pelo menos três filhos legitimados. Cujo nome não era Maria Ribeiro, como referem todas as genealogias antigas, mas sim Leonor Ribeiro, como refere a carta de legitimação. Salvo a coincidência, demasiada, de existirem duas Ribeiro.
De uma primeira relação com Catarina Telles, D. Lopo teve ainda duas filhas. Esta Catarina («Catelina») terá nascido cerca de 1367-8. Poderia haver a tentação de a identificar como Menezes, portanto uma prima de D. Lopo, uma vez que este era filho da malograda D. Maria Telles de Menezes e sobrinho da rainha D.Leonor Telles. Mas não se vê como Catarina Telles podia ser Menezes, além do facto de se documentar sem Dona na legitimação da filha.
"Anais da Vila da Ericeira"
Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

1373

D. Lopo foi o 8º mestre da Ordem de Cristo (1381), principal herdeiro da grande Casa de Sousa, 6º senhor da Ericeira (1371), senhor de juro e herdade de Miranda do Corvo (27.7.1398) e mordomo-mor da rainha D. Filipa.

Tendo falecido Dom Lopo Dias de Sousa, passou o senhorio da Ericeira a seu sobrinho, do mesmo nome, o qual, sendo ainda menor, tinha os bens administrados por sua mãe, Dona Maria Teles, irmã da Rainha Dona Leonor Teles. E parece que por influência desta, foi o menor Dom Lopo nomeado 8º Mestre da Ordem de Cristo.
A Rainha, porém, obrigou a irmã ao pagamento de certas dívidas, e esta viu-se obrigada a vender o senhorio da Ericeira a Dom Gonçalo Rodrigues de Sousa, primo co-irmão de seu falecido marido.
Por morte de El Rei Dom Fernando, este Dom Gonçalo passou para o partido de Castela, pelo que Dom João I lhe fez confiscar os bens, exceptuando porém a Ericeira, por ser de bens patrimoniais já dados a outrém.
Assim, a Ericeira ficou na posse dos seus antigos donatários.
"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

1371

28 de Agosto de 1371


El Rei Dom Fernando confirmou a Dom Lopo Dias de Sousa, irmão de Dona Branca, e a outro Dom Lopo Dias de Sousa, sobrinho de ambos, por ser filho de Dom Álvaro, os previlégios e liberdades dos moradores da Ericeira, proibindo ao Almirante e ao Anabel-Mor que recrutassem gente da Vila para servir na armada e exército, o que já, abusivamente, se havia feito.
"Anais da Vila da Ericeira", Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

sábado, 10 de janeiro de 2009

Ano Velho, Ano Novo

Esta quadra festiva que acabámos de celebrar fez-me lembrar as velhas passagens de ano na Ericeira.
Era tradição muito antiga, na noite da passagem de ano, ao tocar as doze badaladas no sino da igreja, toda a população jagoza deitar pelas janelas tudo o que era considerado velho e inútil. Depois celebravam estrondosamente a entrada do Novo Ano usando todo o tipo de utensílios, nos quais batiam freneticamente até se cansarem. O efeito, para quem estivesse na rua, era o de uma imensa, repentina e arripiante trovoada.
Lembro-me particularmente de uma dessas passagens, há cerca de 35 anos, que ficou famosa na Vila.
Havia no cimo da calçada sul da praia dos Pescadores um velho barco de pesca abandonado, a apodrecer e que servia de casa de banho, cheirando mal à distância. Uma vergonha para uma vila turística como a bonita Ericeira. Igualmente, junto à escola primária, mesmo em frente ao Hospital da Misericórdia, havia uma barraquinha que o antigo Ministério da Agricultura ali tinha plantado para venda de produtos hortículas e que já estava abandonada e a apodrecer há muito tempo, servindo também de casa de banho pública. Outra vergonha e foco de insalubridade.
Ora como era tradição os jagozes desfazerem-se de tudo o que era velho na passagem de ano, e como tinham fama de serem unidos e asseados, logo organizaram uma vasta operação de limpeza urbana. Juntaram-se, e já muitos, foram direitos à tal barraca abandonada e arrastaram-na, inteirinha, pela estrada abaixo, produzindo faíscas e um barulho ensurdecedor, em direcção ao largo do Jogo da Bola. E invadindo o perímetro, instalaram-na ainda inteira, bem no meio da praça. Em seguida, apanhando o balanço, dirigindo-se à calçada sul da Ribeira, trouxeram a velha lancha, arrastando-a pelas ruas (...!) até ao mesmo largo do Jogo da Bola.
Aqui as coisas complicaram-se um pouco; o espaço entre os bancos do Jogo da Bola não era suficiente para passar o barco e apesar dos apelos aflitivos de alguns para que aquela onda humana parasse, o resultado foi o violento abalroamento de um dos bancos que foi de imediato arrancado pela raiz.
O mal já estava feito e ali ficou depositado mais um mamarracho, bem no meio do jardim, onde era impossível ignorá-los.
Para completar o trabalho, ainda penduraram nas árvores todo o tipo de enfeites de Natal; Latas do lixo, bilhas de gás, pequenas carroças, etc. Só faltaram as luzes a piscar.
Apesar de na altura, os jagozes da Ericeira terem sido acusados de vandalismo e terrorismo urbano, o certo é que a Vila se viu livre, assim, de todo o tipo de lixo e porcaria que, espalhados pelas suas ruas, tardavam a ser recolhidos dando um ar de desleixo à nossa Ericeira.
Os jagozes eram assim; para grandes males, grandes remédios...

João Bonifácio

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Kamikasis

Na minha juventude era limitado o número de putos que tinham uma bicicleta. Era um bem comparável ao possuir um carro nos nossos dias. Não que lhes désse-mos um bom tratamento na altura mas era bastante importante possuir uma pois permitia-nos organizar os nossos "Dakar's"; excursões esporádicas aos arrabaldes da Ericeira.
Uma dessas saídas em grupo fizémo-la à Praia da Foz do Lizandro e ficou-me espiritual e fisicamente marcada para sempre. Não me lembro quantos éramos nesse grupo mas sei que éramos os do costume; aventureiros, destemidos, por vezes loucos a rondar a inconsciência, ou se quiserem, inconscientes a rondar a loucura. O percurso da Ericeira ao Lizandro decorreu calmo, no meio de conversa, provocação, cavalinhos e alguns espalhanços.
Tudo aconteceu num repente; ao chegarmos ao cimo da rampa que dá acesso à praia, os primeiros, que tinham as melhores bicicletas, iniciaram a descida a pedalar em pé, numa velocidade vertiginosa. Como sempre, foram seguidos do resto do grupo; um perfeito poletão de ataque tipo KamiKasi.
Eu tinha na altura uma bicicleta Choper, daquelas com uma roda grande atrás, uma pequena à frente, uma manete de mudanças tipo carro americano automático e... travões que já não travavam. No entusiasmo da descida e na sensação embriagante da velocidade, o "sem travões" só me ocorreu a meio da descida. Sem travões? Não. Tinha o "travão de pé" que normalmente usava em alternativa. A técnica era a seguinte: para parar a "bique" encaixava o pé entre o quadro e a roda de trás e mediante mais ou menos pressão no sapato, travava. Como se fosse o travão da roda de trás de um carro, estão a ver?
Não, não estão a ver porque naquelas circunstâncias, naquele dia, na descida do Lizandro, as coisas correram mal.
Por mais esforço que fizesse para travar, por mais que empurrasse o ténis contra a roda, a velocidade não diminuia. E logo a seguir surgiram os primeiros indícios de alarme. O sapato de ténis começava a deitar um estranho fumo cinzento. Pior ainda, do atrito entre a borracha do pneu e a borracha do sapato, o primeiro começava a levar vantagem e o pé começou a aquecer anormalmente. Pânico! Ultrapasso todos! A roda estava já a descascar a pele do pé e já cheirava a outro tipo de queimado! A descida estava a chegar ao fim! Em frente, o final da rampa, uma estrada transversal em "T" e nenhum tempo restante para parar!
Manobra de emergência; tirar de qualquer forma o pé daquela posição aflitiva. Sai o pé (não me perguntem como) fica o sapato. Final da rampa, atravesso a estrada numa fracção de segundo. Para trás fica a bicicleta e depois, a sensação de liberdade de voo... até aterrar de cabeça, já no areal do rio.
Embrulhado, todo torcido qual destroço de aeronave despenhada, com um pé a deitar fumo, só me lembro de hesitar entre chorar ou desatar a rir. Apesar de mais dolorosa, optei pela segunda solução, acompanhado em coro pelos restantes companheiros de aventura que se tinham juntado ao redor, meio assustados, meio divertidos.
Recordo com carinho esses dias, de Jagozes aventureiros.
João Bonifácio

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Quadras soltas cantadas


QUADRAS SOLTAS CANTADAS(1)

a) Antes que o lume se apague
Da cinza fica o calori
Antes que o amor se assente
Do coração fica a dori

b) Maragota não é peixe
Maragota peixe é
Está debaixo da solapa
À espera que venha a maré

c) I
Água barrentinha
Não faças mal à barriguinha
Nem de noite nem de dia
Lá p'rá o meio do meio-dia.(2)

II
bem a Nossa Senhora
C'uma facinha na mão
P'ra matar os bichinhos
Que estão debaixo do chão.

d) A gente somos grandes pescadores
Que chegamos hoje à Nazaré
Mas bamos pedir alguma coisinha
P'rá gente não poder ir a pé.

e) I
A armação do Paulo Caiado(3)
Aquilo é uma beleza
Quando bai entrar no porto
Bai com toda a delicadeza.

II
A armação do Paulo Caiado
Nim berga, nim bai ao fundo
Anda lá o meu amor
Qu'é às estrelinhas do mundo.

f) Grande bicho é o sapo
Dá um pulo e fica ficho
Não basta não ter orelhas
Quanto mais sem rabicho.

g) Lá do meio daquele mar
Tá uma pombinha branca
Não é pomba não é nada
É o mar que se alebanta.

h) Não há pão como o pão alvo
Nim carne como o carneiro
Nim peixe como a pescada
Nim amor como o primeiro.

i) Ó mar alto, ó mar alto,
Ó mar alto, sem ter fundo
Mais vale andar no mar alto
Do que nas bocas do mundo.

j) Ó mar, tu és um leão (4)
Só fazes é espuma branca
Ó pobres dos pescadores
Que eram de Bila Franca.

l) Ó menina do almoço
Traga-me lá o jantar
Dói-me tanto o meu pescoço
Para lá 'tão teu olhar.

m) Ó minha pombinha branca
impresta-me o teu bestido
-E o teu bestido é de penas
-E as penas trago eu comigo.

n) Ó minha pombinha branca
Não bás beber auga à bala
Por causa de ti, pombinha
Já meu amor não me fala.

o) Ó meu mexilhão de rolo
Bou à lapa da malhada
E o mexilhão faz arroz
Das lapas não se faz nada.

p) O barco que partiu à linha rétia
Adeus amigo até ber
Quim não sober nadar é um pateta
E ter braços é mesmo que não ter.

q) Parte, parte, pescador
P'rá pesca da sardinha
bai o barquinho à bela
P'ra voltar à tardinha.

r) As ondas do mar são brancas
As do rio são amarelas
Coitadinho de quem nasce
Para morrer no meio delas.

s) Somos barinas, bamos à praia
E os nossos botes bão atracar
E os nossos homes bêm cansados,
Bêm arraibados do mar.

t) Somos pescadores, grande fama
Qu'inda hoje chegamos à Ericeira
À pesca da bela sardinha
Dentro desta pequena traineira.

u) Tenho casaco de abóbora
Forrado de melancia
Os botões de bento norte
E as casas de calmaria.

v) Pirilampo bota abaixo (5)
Teu pai 'tá no Cartaxo
Tua mãe 'tá na Abadia
Cinco réis p´rá demasia.

1) -As quadras soltas devem provir dos tempos da velha Ericeira em que a gente moça cantava à desgarrada na Fonte do Cabo; outras, mais recentes, são a consequência do tradicional passeio de barco, pelo mar, que as raparigas e rapazes davam em dias de S. João e S. Pedro. Das primeiras, algumas há que são variantes das já recolhidas por Teófilo Braga e Leite de Vasconcelos, nos seus Cancioneiros e Romanceiros. (Joana Alves, A Linguagem dos Pescadores da Ericeira)
2) -Trata-se de uma espécie de reza, encantamento ou magia, fórmula de "esconjuro" para quando se bebe água e não se sabe se é potável.
3) -"Estas duas quadras foram feitas há cerca de 40 anos, num passeio ao alto mar, pelo S. João". (Joana Alves)
4) -"Esta quadra foi composta à morte duns pescadores de Vila Franca que estavam na Ericeira a trabalhar nas redes do linguado." Joana Alves). Trata-se de uma invectiva ao mar, que existe em todo o fundo magístico e metafórico do nosso património tradicional.
5) -"Esta quadra não é cantada. É dita pelas crianças quando levantam o copo debaixo do qual guardam, durante uma noite, um pirilampo." (joana Alves). Curiosamente, ainda hoje, há quem diga esta rima às crianças, sendo ritmada à semelhança de uma lengalenga.
"Cancioneiro Regional da Ericeira" - 2000