segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O culto das águas

( Árula consagrada por Atilia Amoena à(s) fonte(s) e conservada no Museu da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira )
A veneração pagã das fontes na Ericeira

"O culto das águas - e, em particular, o das fontes consideradas curativas, dos poços termais, das salinas, etc. - apresenta uma continuidade impressionante. Nenhuma revolução religiosa pôde aboli-lo. Alimentado pela devoção popular, o culto das águas acabou por ser tolerado até mesmo pelo cristianismo, depois das perseguições infrutíferas da Idade Média. A continuidade cultural estende-se, por vezes, desde o Neolítico até aos nossos dias."
(Tratado de História das Religiões, Mircea Eliade, Lisboa, Edições Asa, 1994, p.257)

Conhecem-se alguns testemunhos da prática, em território ericeirense, do culto pagão das águas, ou mais propriamente da veneração das fontes, que tinha lugar de destaque na tradição religiosa romana bem como na de outros povos que se instalaram na Península Ibérica.
Remonta ao século II da era cristã a árula romana descoberta em 1947, quando se procedia a trabalhos de remoção na zona norte do antigo casarão da Armação, que dava para a Travessa da Misericórdia e que depois foi estância de madeiras.
Este pequeno altar, em pedra-mármore, que pode ser admirado no Museu da Misericórdia da Ericeira, é consagrado por Atilia Amoena, filha de Publius (ou Publicius) à fonte (ou às fontes), consoante as leituras da sua epígrafe. Desconhece-se o local da sua primitiva implantação, embora José Cardim Ribeiro, Manuel Gandra e outros admitam estar esta pedra votiva relacionada com o período sacroterapêutico da história das Águas de Santa Marta. Não seria de regeitar - segundo esta tese - a identificação da árula com "uma boa pedra" encontrada em 1484, nas escavações efectuadas num terreno situado perto do actual local de Santa Marta, e reclamada pelos anteriores proprietários como "muito pertencente para o altar" da capela a construir na vizinhança das nascentes medicinais.
Durante o decorrer dos séculos, ter-se-á perdido o rasto a este monólito, desconhecendo-se as dimensões e aspecto, e se chegou a ser usado no altar da primitiva ermida de Santa Marta.

Outro documento, respeita à veneração, na Ericeira, ainda no século XVII, ao génio, ou espírito divino residente nas nascentes de água. Em 5 de Outubro de 1659, o Visitador Eclesiástico, Dr. João Gomes Godinho, proibiu o costume de muitas pessoas irem às fontes, no primeiro domingo de Maio, e nelas fazerem ofertas de pão, trigo e outros frutos da terra, "o que tem ressaibos das superstições antigas dos gentios", e porque "as ofertas, adorações e venerações se devem somente a Deus nosso Senhor e a seus Santos". Esta interdição abrangia não só "o dito dia de Maio", como outro qualquer, e era extensivo a fontes, rios e outra qualquer parte, que não fosse das aprovadas pela Igreja.
"Memória das Águas"
Sebastião Diniz - 1997

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