quarta-feira, 25 de março de 2009

o Zeca Cardoso


A Praia do Sul, foi em tempos áureos, destino de excelência para banhistas. Famílias inteiras que religiosamente a frequentavam na época balnear. Foi, sem dúvida, o ex-líbris da Vila da Ericeira.
Durante muitos verões fiz nesta praia serviço de Nadador-Salvador e durante esse período, foram imensos os episódios pitorescos que presenciei. De entre todos, houve um, bem caricato, que recordo com prazer e que faço questão de vos contar.
Zeca Cardoso, todos os anos aqui passava uma temporada. Era já uma presença habitual.
Homem possante, de constituição física impressionante, irradiava vigor apesar de já um pouco entrado na idade. Havia quem lhe chamasse o “Tarzan”.
O Zeca era um exímio nadador e normalmente durante a maré-cheia, costumava fazer a sua maratona de alto-mar. Independentemente das condições desse mesmo mar e da bandeira que estivesse hasteada. Uma vez entrado na água passava de homem a peixe numa perfeita metamorfose. E lá ia ele na sua cadência lenta e bem ritmada, nadando mar dentro até encontrar, já bem longe da costa, a força da corrente da Praia do Algodio vinda do norte. Era hora de voltar.
Numa tarde de Domingo, em plena maré-viva e com mar forte, o Zeca lá foi, como de costume, dar o seu passeio ao reino de Neptuno. Já ia bastante afastado da praia quando na “Sala de Visitas” - pequeno miradouro no cimo da arriba -, pára uma excursão de “domingueiros”, pessoal do interior, pouco habituado a ver o mar. No meio da turba que espreitava o movimento da praia em baixo, alguém notou que lá longe, no oceano, um homem esbracejava. Era o Zeca que “ia” no seu característico estilo de costas, nadando, elevando alternadamente os braços, como roda de pás de um barco a vapor.
Gera-se a confusão nos excursionistas. Espalha-se o pânico. Alguém estava a morrer afogado e levantava desesperadamente os braços pedindo socorro. Lançam-se gritos lancinantes de alarme das gentes em cima, no mirante, para as gentes em baixo, na praia, na tentativa de chamar a atenção para aquela tragédia! Mas em baixo ninguém atende.
Então a turba em desespero, lança-se em louca correria, calçada abaixo, convencidos que o tempo escasseia para aquela pobre criatura em perigo. Há que gritar àqueles surdos, olhos nos olhos! Acercam-se finalmente dos nadadores-salvadores e entre súplicas e insultos exigem que o salvamento se faça de imediato.
Todas as tentativas para explicar o equívoco eram inúteis. Não adiantava dizer que se o homem se estava a afogar, já o estava há muito tempo e nunca mais se afogava.
Na perspectiva de alguém passar dos gritos à agressão, decidimos lançar a chata à água e remar até ao Zeca, pelo menos para que os ânimos se acalmassem. E assim acompanhámos, em alegre cavaqueira, o “náufrago” até à praia que logo coalhou de gente em volta do “pobre homem” que quase se afogou, não fosse a “pronta intervenção” do povo, mau grado a "má vontade" demonstrada pelos salva-vidas (…!).
Zeca Cardoso, saindo da água fresco como uma alface, encara toda aquela peixeirada com um desconcertante sorriso e com toda a calma, dispõe-se a explicar o engano. À pergunta de um idoso excursionista: - "O que é que fazia tão longe da praia, homem?", responde: - "Fui ver se o mar estava bravo". E dirigindo-se aos demais, pede polidamente: - "…e agora desandem que me estão a tapar o sol."
O idoso que já estava a desandar, pára voltando-se para trás. Coça o queixo com a mão e com uma expressão de dúvida, enrugando a testa, olha curioso para o Zeca que, já deitado, secava-se deliciado no calor daquela tarde de verão. No canto da boca podia perceber-se aquele sorrisinho matreiro e aquela gargalhada surda que o sacudia como um motor diesel a querer “pegar”.
Para toda aquela gente, era mais um banhista louco. Para mim era a alma de Jagoz no seu melhor.
João Bonifácio

1486

1 de Setembro de 1486
(Túmulo de Mem de Cerveira - Museu Arq. do Carmo)
Mem de Cerveira, Cavaleiro da Casa de El Rei, Contador das Obras e Juiz Contador dos Resíduos, Provedor dos Órfãos, Hospitais, Capelas, em as Contadorias de Santarém e Alenquer, veio à Ericeira e, nesta data, tomou as contas ao Concelho para o efeito de cobrar a terça pertencente ao Rei, a qual foi entregue ao respectivo Recebedor, do que Gonçalo Gil, escrivão, passou a competente certidão.
Esta diligência repetiu-se, na Ericeira, de anos a anos, durante quase todo o século XVI.

"Saibam os que esta quitação virem, que no Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de 1486 annos, ao primeiro dia do mez de Setembro, em a Villa da Eyriceira, foi filhada conta dos annos passados, por Mem Cerveira, cavaleiro da caza dEl Rei nosso senhor, e o seu Contador das Obras. Juiz Contador dos Resíduos e Provedor dos Órfãos, Hospitaes, Capellas, em as contadorias de Santarem e Alenquer, - aos homens bons da dita Villa, a saber: do anno de 1480, que se acabou por São João Baptista da dita era; e assim que são seis annos. E mostra-se por justa conta, renderam as rendas do verde e da almotaçaria e cousas ao Concelho apropriadas, dois mil e cento e sesents reaes, dos quaes vem a terça do dito Senhor, 720 reaes; os quaes logo foram entregues pelos Oficiaes que foram os ditos seis annos, a João A.º, recebedor, e são carregados sobre elle, em receita, no livro do dito Senhor. E porque é verdade que recebeu os 720 reaes, dos ditos Oficiaes, dos ditos seis annos, pediram assim esta quitação, para terem por sua guarda e guardado dito Concelho; e o dito seis Contador lha mandou dar, em a qual os dá por quites e livres, dos ditos annos, de hoje para todo o sempre, que jamais por ello não possam ser demandados em juizo nem fora delle. E por firmeza dello, assinou aqui o dito Contador e Recebedor. Feita por mim G.º Gil, escrivão dos contos, no sobredito dia, mez e era. E assim resguardo os annos atraz, querendo-os o dito Senhor mandar arrecadar. (a. ) Mem Cerveira. J.º A.º. Pg.20."
(Arquivo Ericeirense, Maço I - Documentos antigos)
"Anais da Vila da Ericeira"
Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932

domingo, 15 de março de 2009

Aquele olhar...

Quando éramos pequenos, no verão, costumávamos nadar em pequenos grupos entre a Praia do Sul e a Ribeira (Praia dos Pescadores) contornando as furnas e respeitando a devida distância de segurança das rochas negras daquele promontório. Depois, após um breve descanço e uma sessão de mergulhaços de uma prancha que existia cravada nas pedras junto à rampa de recolha dos barcos, fazíamos o percurso de volta, sempre a nadar. Para nós era um desafio e uma aventura que nos proporcionava um especial prazer e muita adrenalina. Não que isso nos fosse proporcionado apenas pelo sentir da ondulação forte e da proximidade das furnas mas porque por vezes cruzávamos com, ou éramos acompanhados por, grupos de botos ou toninhas; animais da família dos golfinhos mas de maior porte.
E a sensação era incrível! Estes passavam por nós e faziam-no tão de perto que sentíamos um forte abanão na água, produzido pela sua deslocação. Lembro-me de uma vez, uma dessas toninhas acompanhada de uma cria, ter abrandado ao se cruzar comigo, quase parando, e ter-me observado de uma forma enigmática. Para mim, aquele olho redondo, curioso, pareceu-me um mundo de mistérios, uma porta para o universo. Transmitiu-me algo que até hoje não consegui decifrar mas que mudou a minha vida para sempre.
Perguntei-me se aqueles seres saberiam reconhecer o jagoz que temos em cada um de nós. Sorri-lhe e tentei tocar-lhe, ao que ela e a cria responderam com um frenético arranque, tal como faz um cachorro brincalhão. Eram momentos únicos.
Agora, ao sentar-me nas rochas das furnas a contemplar o mar, deixo-me tomar pela nostalgia daqueles tempos. E por vezes, parece-me ver ainda, os seus vultos ligeiros cruzando aquelas águas.
Ainda sinto aquele olhar doce perscutando-me a alma, tão cheio de paz e sabedoria.
João Bonifácio

O Bibem

Francisco Felisberto Vivient era oficial do exército francês (parece-me que capitão) que por cá ficou depois da retirada de Massena, durante as invasões francesas.
Andou fugido e escondido; e uma noite, não sei quando nem como, apareceu no lugar de Fonte Boa dos Nabos. Ali foi recolhido por Francisco Cristóvão Valverde, fazendeiro, morador naquele lugar, que escondeu o francês em sua casa.
Passados tempos e acalmados mais os ódios populares contra os franceses, o Vivient veio para a a Ericeira, morar em casa de um filho que o Valverde aqui tinha e que exercia a profissão de calafate.
Parece que o francês era homem abonado de dinheiro, pois que, pouco tempo depois de estar na Ericeira, adquiriu o domínio útil do cerrado existente defronte da Igreja Paroquial de São Pedro, conhecido então por Cerrado de Dona Juliana, pois que o domínio directo daquele cerrado havia pertencido à falecida Morgada da Ericeira, Dona Juliana de Sousa e Brito de Noronha.
Mandou o francês demolir uma velha adega que existia no cerrado e ali fez construir uma casa térrea de moradia, a qual hoje pertence, com o cerrado, ao Sr. Joaquim José Simões Gonçalves.
Ali viveu o francês muitos anos, no decorrer dos quais adquiriu mais bens rústicos, chegando a possuir uma regular casa de lavoira, com criados, juntas de bois, etc.
Foi casado com Dona Maria Teresa Vivient, a qual não sei se era francesa se portuguesa.
Segundo me disseram pessoas que conheceram o francês, ele era homem ilustrado e possuía uma boa biblioteca. Ensinou a sua língua e outros conhecimentos aos netos do pobre fazendeiro que o havia recolhido, filhos do calafate, que foram depois oficiais da Marinha mercante, tios e pai do actual oficial de Marinha mercante, Francisco Valverde Santana.
Parece-me que tanto o Vivient como a mulher não faleceram na Ericeira, e nada mais sei acerca deles. (Dona Maria Teresa Vivient, faleceu na Ericeira, a 1 de Junho de 1843).
Só sei que em 1860, o Prior da Ericeira, padre Manuel Maria Ferreira, adquiriu em arrematação judicial, o domínio útil do tal cerrado e casa, na qual morou muitos anos e ali faleceu.
Quando o Marechal Gomes da Costa era um simples tenente e comandava a Secção Fiscal da Ericeira, as senhoras Valverde lhe fizeram presente da espada que havia pertencido ao Vivient, e conservavam em sua casa vários objectos do seu uniforme e equipamento, que serviam de divertimento ao pequeno Francisco Valverde Santana, que os acabou por destruir.
O oficial francês era, e sempre foi, conhecido na Ericeira, não pelo seu apelido de Vivient, mas simplesmente por: O Bibem.
Até em documentos oficiais assim tenho visto escrito.

"Tia Maria Ásquinha"
Jaime d'Oliveira Lobo e Silva
Ericeira, Agosto de 1941

sexta-feira, 13 de março de 2009

1484

11 de Junho de 1484

Em audiência, no Paço do Concelho foi condenado Gomes Leite, morador na Ericeira, a entregar uma pedra muito pertencente para o altar da senhora Santa Marta.

"Sejam em conhecimento de verdade ao que a presente virem que no anno do nascimento de nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quatrocentos e oitenta e quatro annos, onze dias do mez de Junho, em Villa da Eyriceira, terra do senhor João Fernandes de Sousa, no Paço do Concelho, estando ahi Luiz Gonçalves morador em a dita Villa, como juiz alvidro a prazimento de partes, fazendo audiencia, perante elle pareceram partes - a saber: Gonçalo Martins e João Afonso, moradores em a dita Villa, de uma parte; e outro sim Gomes Leite, morador em essa mesma, da outra. E logo por elles ditos Gonçalo Martins e João Afonso foi dito que elles venderam um chão de um pardieiro em a dita Villa, ao dito Gomes Leite, afora a pedra que no dito pardieiro estava, porque haviam mester della para se fazer a Ermida da Senhora Santa Marta; e que ora o dito Gomes Leite lhes embargava uma boa pedra que achara em o dito pardieiro, a qual era muito pertencente para o altar da dita Senhora. E sem embargo que lha requeressem e lha entregasse, elle refusou, como ainda agora refusa de a não querer dar; que pediam a ele juiz que lha mandasse entregar. E o dito juiz fez pergunta ao dito Gomes Leite que defeza dava a não lhes dar a dita pedra, pois que lhe venderam o chão e não a pedra; e por elle foi dito que elles lhe venderam o dito chão com tal condição que o dito chão ficasse com tanta quantidade de pedra com que se bem podesse tapar; e mais que a pedra que elles demandavam não era nem estava na parede do dito pardieiro, mas que elle a tirara do sôo o chão, debaixo de um forno, e portanto não pertencia a elles. E o dito juiz vista a razão de uma parte e de outra, determinou e julgou que o dito Gomes Leite dê e entregue a pedra aos sobreditos Gonçalo Martins e João Afonso para a dita Santa Marta, sem outra mais contenda. E o dito Gomes Leite disse que pois lhe julgou a dita pedra, que assim lhes mandasse que lhe fizessem logo a carta do dito chão, e se não que lhe tornassem seu dinheiro. E o dito juiz visto seu requerimento ser justo, mandou aos sobreditos Gonçalo Martins e João Afonso que de hoje a quinze dias lhe façam sua carta, e senão que lhe tornassem seu dinheiro. E o dito Gomes Leite pediu assim uma carta de sentença, e o dito juiz lha mandou dar. Testemunhas, Bastião Diniz e Diogo Simão e Pedro Eannes, sapateiro, e Fernão da Tôrre, moradores em a dita Villa. E eu João Fernandes, tabalião em essa mesma pelo dito senhor João Fernandes de Sousa, que isto escrevi e aqui meu sinal fiz que tal é (signal Público) Pagou dez réis.

E depois disto aos doze dias de Outubro de quatrocentos e oitenta e quatro annos, no Paço do Concelho, em audiências, perdante Luiz Eannes, Almotacé, a prazimento de partes, pareceram estas partes e disse Gomes Leite que elle tomara trabalho e fizera serviço no dito pardieiro, que valia oitenta réis; que lhos julgassem. E os sobreditos Gonçalo Martins e João Afonso disseram que paguado lhe tinham seu dinheiro, segundo nesta sentença se faz menção. E o dito juiz, visto tudo e esta sentença, mandou que a sentença se cumpra e que Gomes Leite se vá em paz. E elle apellou; não lhe conheceu da apelação nem de agravo porque não é dos cazos. Testemunhas o Alcaide e João Lourenço, porteiro, e João Ruivo, juiz. João Fernandes, tabalião isto escrevi."

(Arquivo Ericeirense, Maço I - Documentos antigos)
"Anais da Vila da Ericeira"
Jaime d'Oliveira Lobo e Silva - 1932