segunda-feira, 27 de julho de 2009

A Caneja

Ao lerem o título deste artigo, muitos dos meus leitores julgarão que se trata do nosso prato regional, a saborosa caneja de infundice.
Nada disso. Trata-se mas é da Ti Joana Caneja, reconhecida como bruxa emérita, por toda a população da Ericeira, durante mais de meio século.
Eu ainda a conheci muito bem. Era uma velha antipática, baixa, atarracada, pescoço curtíssimo, umas enormes sobrancelhas em forma de arco de volta perfeita, uns enormes olhos muito pretos e uma cara também enorme, ornada de um buço quase bigode.
Muita gente tinha medo dela, do seu olhar fixo, dos seus modos reservados e silenciosos, das suas frases breves, curtas, incisivas. Era de poucas falas, a tia Joana Caneja, mesmo porque todos fugiam de falar com ela.
Morava em Santa Marta, numa pequena casa térrea, de chão batido e telha vã, que lhe era cedida, gratuitamente pelo fazendeiro António de Barros Sobrinho (o António dos Terços) só com o encargo de lhe ensinar os filhos a ler.
Nos últimos anos da sua vida, que foi quando eu a conheci, vivia de esmolas que, segundo se dizia, ninguém se atrevia a negar-lhe, por medo dos seus malefícios de feiticeira; e pelos mesmos motivos era sempre aviada muito a seu contento, nas pequenas lojinhas onde se fornecia.
Contava-se muita coisa a seu respeito, relativa aos seus terríveis malefícios. É de crer que tudo isso fosse derivado do medo e repulsa que o seu aspecto físico inspirava, de que ela sabia, aliás, aproveitar-se muito bem, na recepção de esmolas e na compra do que lhe era necessário. Uma espertalhona, afinal a Tia Caneja.
Já vou contar uma das suas feitiçarias, que me foi narrada por pessoa competente no assunto, e parece que esse caso firmou, solidamente, a sua reputação de bruxa, mestra em malefícios. Antes, porém, devo dar os seguintes esclarecimentos:
Joana Michaela da Conceição, a Caneja, nasceu na Ericeira a 17 de Dezembro de 1807, sendo filha de Daniel dos Santos Ribeiro e de sua segunda mulher, Ana Joaquina dos Santos. Este Daniel dos Santos Ribeiro era descendente de boas famílias da Ericeira, e parece não ter sido pessoa de pouco mais ou menos, pois em 1831 exercia aqui o cargo de Procurador dos senhores Condes da Ericeira, Marqueses do Louriçal.
Casou a Joana a 9 de Janeiro de 1836 com um Francisco Vicente, natural de Santo Isidoro, do qual teve alguns filhos que morreram pequenos, com excepção de um, de nome José, que morreu no mar a bordo de um brigue chamado O Conde.
O caso a que acima me refiro, é o seguinte: aí por 1862, uma tarde, ia a Caneja descendo a calçada da praia do peixe, encontrou uma rapariga de cerca de 16 anos, chamada Maria, filha de Manuel António da Silva Fino e de Aurélia da Conceição. Esta Aurélia é aquela a quem nós, os do meu tempo, chamávamos a "Aurélia dos Bolos", grande artista na confecção das célebres cavacas, biscoitos e charutos, e que morava numa casa ali na Travessa da Esperança.
A Caneja parou defronte da rapariga e perguntou-lhe:
- O teu pai já veio do mar?
- Já sim, Tia Joana.
- Trouxe muito peixe?
- Que lhe importa a vocemecê se foi muito ou se foi pouco? Se quiser vá lá ver.
- Ó atrevida, tu respondes-me assim? E a Caneja tirando rapidamente um chinelo do pé, deu com ele uma chinelada num dos braços da rapariga.
Trocaram ainda mais algumas frases e cada uma seguiu o seu caminho.
À noite a rapariga sentiu uma pequena dor no braço agredido pela Caneja, e no dia seguinte o braço estava muito inchado. Foi crescendo a inchação e a Tia Aurélia levou a filha ao médico. Pomadas, fricções etc., mas o braço continuava inchado. Foi a outro médico. Mais tratamento, mais fricções, mas a inchação não cedia. Agravaram-se as suspeitas, que já havia, da Caneja, e toca de levar a doente a Lisboa consultar mestra de fama. Esta viu e examinou a rapariga e logo declarou que aquele mal não tinha cura; que todavia, a pessoa que o havia praticado teria que comparecer um dia em casa da vítima a pedir que lhe dessem uma trancinha dos seus cabelos. Sucedeu tudo tal e qual, disse-me a minha narradora. A rapariga foi de mal a pior e faleceu a 27 de Fevereiro de 1863.
Estava ela já amortalhada no seu caixão, ali naquela casa da Travessa da Esperança, rodeada de parentes e vizinhos, quando a Caneja entra a dar os pêsames. Lamentando a morte daquela rapariga de 16 anos, a Caneja começou a gabar a formosa cabeleira da falecida e pede à tia Aurélia que lhe permita cortar e levar uns anéis daquela cabeleira.
A tia Aurélia atirou-se à Caneja como uma leoa ferida, insultou-a, injuriou-a e, aos empurrões, pô-la na rua.
Assim mo contou a minha informadora.
Deste género contavam-se muitas coisas da Caneja, que não sei se eram mais verdadeiras do que a que fica aqui narrada. O certo é que até à hora da sua morte, a Tia Joana Caneja gozou sempre grande fama de bruxa malfazeja. E além de gozar dessa fama, gozou também da facilidade em obter esmolas, e facilidades nas suas compras. Isto é que é muito certo.
Morreu a tia Joana Caneja na Ericeira, na casa que habitava em Santa Marta, a 24 de Setembro de 1893, tinha eu quase 18 anos.
"Tia Maria Ásquinha"
Jaime O. Lobo e Silva
1932

1502

1 de Março de 1502

Tendo o Duque de Bragança feito renúncia, ou troca, com El Rei Dom Manuel, dos direitos da dízima nova do pescado da Ericeira, que lhe haviam sido concedidos em 15 de Dezembro de 1500, o mesmo Rei concedeu, nesta data, a referida dízima a Dom João Luís de Meneses e Vasconcelos (Conde de Penela).

"Anais da Vila da Ericeira"
Jaime d'Oliveira Lobo e Silva
1932

Por caminhos da Ericeira (2)

Dentro da vila da Ericeira, que disfarça as rugas da velhice debaixo de incontáveis mantos de cal, há que ver e observar.
Não lhe falta primoroso pelourinho e tam ciosa dele que, para o defender dalguma cobiça ou desacato de má vizinhança, um ericeirense patriota preferiu enterrá-lo, em arriscada conjuntura, alguns palmos abaixo do chão! Sucedeu isto, segundo me informaram, em 1860 ou 1864 por ordem de Francisco Ericeira*.
Constava o monumento de três peças ajustáveis.
A primeira era um fuste cilíndrico com a base aderente, onde se esculpiam quatro folhas lisas como as patas românicas. Na parte superior deste fuste, quase no extremo, existe uma anilha composta dum astrágalo no meio de dois escapos. Esta parte da coluna tem a altura total de 1m,45 e a base quadrada tem de lado 0m,30; o diâmetro do fuste são 0m,255. A segunda peça é um tronco do fuste que constitui o complemento da peça anterior; tem apenas de comprido om,53. A terceira peça é o remate do pelourinho, e é a mais interessante. Tem duas partes, tecnicamente diferentes, embora constituam um só todo. A parte inferior é o capitel, a superior um pináculo. O capitel é composto do astrágalo circular, ao qual se segue uma moldura lisa, onde se espaçam quatro pequenos florões. Por cima correm duas molduras salientes de planta oitavada, uma das quais é o ábaco; por elas termina o capitel. Do plano superior ou mesa do ábaco, emerge verticalmente um cone, cuja base está inscrita no octógono do mesmo ábaco, cone ornado de duas ordens de cogulhos, em número de quatro cada uma, sendo os da primeira ordem mais avantajados do que os da segunda. O vértice deste pináculo está mutilado. As dimensões são as seguintes: altura do capitel 0m,35; diâmetro do ábaco 0m,43; altura do pináculo 0m,58.
Parece pertencer ao século XVI esta obra.
Passado o susto e não sei se adormecida alguma rivalidade, que neste símbolo de autonomia tivesse posto olhos de iconoclásticos, o belo monumento foi exumado em 1906 pelo grande amigo da Ericeira, Sr. Dr. Eduardo Burnay; mas dorme ainda na terra nua, se bem que debaixo de telhas amigas.
Aqui junto um esboço dele, feito à-la-minute, mas tal como me foi mostrado, em pedaços. Digno é de que se veja de novo erguido, mas eu não o quereria exposto à corrusão daqueles ventos salinos da Ericeira; ergam-no dentro dum edifício pertencente ao Estado ou à Vila.
Vejam-se figs. 1, 2 e 3.

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* Francisco José da Silva Ericeira (1800-1871) benemérito ericeirense, deixou nome na sua própria terra, onde ainda vivem descendentes. Foi oficial da marinha mercante com o posto de tenente honorário da Armada e o 1.º capitão do porto da Ericeira. A D. Maria II, de quem era partidário acérrimo, chamava desvanecido a sua rial comadre, por se ter dignado ser madrinha de uma sua filha, cujo padrinho foi Costa Cabral. A este dedicado filho da Ericeira, dizem que se deve a estrada para o Sobreiro. Empobreceu-se para o engrandecimento da sua terra, e na campa quiz que lhe lavrassem a seguinte paráfrase dos dois versos seguintes:
Eu só da vida fico contente,
Que a minha terra amei e a minha gente!
O 1.º verso autêntico é "Eu desta glória só fico contente"; o do epitáfio tem uma sílaba a menos.
Ao seu amigo, também ericeirense, Jaime Oliveira Lobo e Silva, agradeço as indicações biográficas
respeitantes a este seu conterrâneo, que já em 1907 tinha ali, na voz do povo, uma rua chamada do Ericeira.
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O Archeologo Português - 1914

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Por caminhos da Ericeira (1)

"Em Agosto de 1907, fiz uma temporada de ares salinos na Ericeira, vilazinha que alveja tanto sobre a aresta de arribas medonhamente alcantiladas, que não sei como resiste à vertigem de se despenhar para o abismo do oceano transparente e límpido.
Se a povoação em si é da mais lavada brancura nas paredes das casas, nos telhados dos edifícios, em todas as construções por modestas que sejam, pois que nada escapa ao zelo minucioso do caiador ericeirense, as terras, os campos, as rochas circundantes são o que há de mais aridamente torrado pelo sol, que lhes calcina a argila amarela.
Não se pode pois dizer que tenha meiguice a paisagem, mas o asseio característico da vila, a cerúlea limpidez do seu mar, o rumoroso bulício da sua vida piscatória, a monotonia reparadora e benéfica dos seus varões resgatam-na generosamente daquele senão, que para gente pacata redunda num apreciado atractivo.
Se o vento, ali concentradamente salgado, permitisse acrescentar à tela desta paisagem as penumbras ligeiras dos pinhais ou as sombras profundas das matas, nada faltaria para amaciar a crua singeleza das suas tintas: nos terrenos, o ocre com a sua quente tristeza; além da praia, o mar com o seu mais scintilante verde-azul; a vilinha com a sua mais branca reverberação, o céu como uma enorme torqueza olhada pelo interior.
Mas a árvore é vencida, naquela costa, pelo açoute marinho que, sem remissão, lhe cresta a folha movediça; apenas a vinha consegue, nas encostas meticulosamente protegidas por multiplicados "azerves" *, esconder à rajada salina os seus cachos pendentes.
A quem todavia alongar os passos para fora do povoado, e o fizer com senho de pesquisador, não será estéril o desafio que, por esta forma, lança ao abrasamento dum sol enexorável ou à ínvia aspereza dalguns sítios.
É o que vou comprovar nestas páginas que se seguem, embora sciente que não fui o primeiro na tentação. Seguirei na exposição o rasto dos meus passeios em volta da Ericeira; vai assim, a modo de roteiro, este escrito.
Do que arquivei em apontamentos, creio, sem imodéstia, que nem tudo será inutil, apesar do grande mérito dos que me precederam, especialmente de um, a cujo selecto espírito aqui rendo a minha homenagem de saudade e admiração. Falo de Gabriel Pereira (autor do opúsculo "A Vila da Ericeira"), o bom e sagaz observador, o escritor de graciosas ironias, que entabolava ameno cavaco com o seu leitor, dizendo o muito que sabia como quem pouco sabia."

* - O termo já vem no dicionário de Morais: paravento feito de ramos para emparar as eiras. Na Ericeira os abrigos são feitos de caniços e às vezes de "maranhos" ou molhos de vides. Os fazendeiros mais abonados fazem-nos com urze.

O Archeologo português - 1914

quinta-feira, 16 de julho de 2009

1501

13 de Outubro de 1501
D. Manuel I
No cartório do escrivão da Câmara, foi apresentado ao Juiz Ordinário uma carta da Câmara de Sintra , contendo um traslado de um mandado de Dom Manuel, ordenando que se lance logo uma finta de 4 réis a cada morador para pagamento das despesas da reforma dos Forais, visto se ter reconhecido insuficiente uma outra que já se havia lançado para o mesmo efeito.
A carta da Câmara de Sintra é datada de 9 deste mês e foi apresentada pelo Porteiro daquela Câmara.

(Nos finais do século XV, a Câmara de Sintra quando, em documentos oficiais, se dirigia à da Ericeira, empregava uma das seguintes fórmulas:

"Virtuosos amigos. Honra, prazer com muita vida vos dê nosso senhor Deus quanto vós quereis e quanto nós os Juízes de Sintra para nós queiramos. Praza-nos saber, etc. etc. etc."

"Honrados Juízes, Vereadores, Procurador e Homens Bons da Villa da Ericeira os Juízes, Vereadores e Procurador da Villa de Sintra nos encomendamos em vossas graças e boas amizades. Amigos, praza-nos saber, etc. etc. etc.")

(Arquivo Ericeirense, Maço I - Documentos Antigos)

Anais da Vila da Ericeira
Jaime d'Oliveira Lobo e Silva

1500

15 de Dezembro de 1500

El Rei Dom Manuel I concede a dízima nova do pescado, na Ericeira, ao Duque de Bragança.

Anais da Vila da Ericeira
Jaime d'Oliveira Lobo e Silva
1932

terça-feira, 14 de julho de 2009

S. António vandalizado


«No dia 5 de Outubro de 1910, por volta das 16:00, partia para o exílio a família Real Portuguesa, na sequência da Revolução que tinha eclodido na manhã desse dia, em Lisboa. Era a implantação da Republica, e fechava-se assim, um vasto capítulo da História de Portugal, que durara quase 800 anos. A areia da praia dos pescadores da Ericeira, foi o ultimo pedaço de terra Lusitana pisada por um Rei de Portugal, e foram pescadores da terra, quem num acto carregado de simbolismo, transportaram o monarca e a família ao iate que os conduziria ao exílio. Do alto da falésia das Ribas, os jagozes assistiram a este episódio da História de Portugal, entre o atónito e o constrangido, todavia com o maior respeito.
A República era para a grande generalidade do povo Português – principalmente para quem residia fora dos grandes centros urbanos de Lisboa e Porto – uma total desconhecida. Rapidamente a ala mais radical do Partido Republicano Português (PRP), tomou as rédeas da governação, e começou-se desde logo a perceber que a «ditadura Democrática», de Afonso Costa e Cª era o pior dos Regimes. O povo Português – de enraizadas tradições católicas – assistiu, na sequência da entrada em vigor da Lei de separação do Estado e da Igreja, a ferozes perseguições ao clero, tendo mesmo alcunhado Afonso Costa de «mata-frades».
É neste cenário, que um dia na Ericeira, desapareceram os santos da Capela de Santo António, talvez o local de culto mais emblemático da Vila. Horas depois, começaram a ser avistados junto às rochas laterais à praia dos pescadores (que dividiam esta da praia do Algodio), e a virem dar ao areal da própria praia. Os Ericeirenses constataram, num misto de espanto e tristeza, que os santos haviam sido tirados da Igreja, não por vulgares ladrões, mas por jacobinos, lacaios de Afonso Costa, que quiseram exibir o seu anti-clericalismo desta forma espampanante.
Em função deste episódio, a generalidade do povo da Ericeira – católico e temente a Deus – logo anteviu desgraças. Segundo pessoas que acompanharam os acontecimentos à época, nunca mais o peixe abundou na costa da Ericeira como antes, e a importância do porto de mar foi decaindo progressivamente, no contexto nacional. Mito ou não, se olharmos para a realidade actual, não podemos deixar de ficar a pensar, que a importância da Ericeira enquanto porto de pesca, veio efectivamente em queda livre daí para cá. Nem todos terão conhecimento, mas o porto da Ericeira, era nesse tempo, bem mais importante do que Peniche, Cascais ou Figueira da Foz. Hoje é aquilo que sabemos.»
(Contado pelo meu avô Júlio «catanixa», nascido em 1906 e falecido em 1991.)
José Henriques