sexta-feira, 17 de julho de 2009

Por caminhos da Ericeira (1)

"Em Agosto de 1907, fiz uma temporada de ares salinos na Ericeira, vilazinha que alveja tanto sobre a aresta de arribas medonhamente alcantiladas, que não sei como resiste à vertigem de se despenhar para o abismo do oceano transparente e límpido.
Se a povoação em si é da mais lavada brancura nas paredes das casas, nos telhados dos edifícios, em todas as construções por modestas que sejam, pois que nada escapa ao zelo minucioso do caiador ericeirense, as terras, os campos, as rochas circundantes são o que há de mais aridamente torrado pelo sol, que lhes calcina a argila amarela.
Não se pode pois dizer que tenha meiguice a paisagem, mas o asseio característico da vila, a cerúlea limpidez do seu mar, o rumoroso bulício da sua vida piscatória, a monotonia reparadora e benéfica dos seus varões resgatam-na generosamente daquele senão, que para gente pacata redunda num apreciado atractivo.
Se o vento, ali concentradamente salgado, permitisse acrescentar à tela desta paisagem as penumbras ligeiras dos pinhais ou as sombras profundas das matas, nada faltaria para amaciar a crua singeleza das suas tintas: nos terrenos, o ocre com a sua quente tristeza; além da praia, o mar com o seu mais scintilante verde-azul; a vilinha com a sua mais branca reverberação, o céu como uma enorme torqueza olhada pelo interior.
Mas a árvore é vencida, naquela costa, pelo açoute marinho que, sem remissão, lhe cresta a folha movediça; apenas a vinha consegue, nas encostas meticulosamente protegidas por multiplicados "azerves" *, esconder à rajada salina os seus cachos pendentes.
A quem todavia alongar os passos para fora do povoado, e o fizer com senho de pesquisador, não será estéril o desafio que, por esta forma, lança ao abrasamento dum sol enexorável ou à ínvia aspereza dalguns sítios.
É o que vou comprovar nestas páginas que se seguem, embora sciente que não fui o primeiro na tentação. Seguirei na exposição o rasto dos meus passeios em volta da Ericeira; vai assim, a modo de roteiro, este escrito.
Do que arquivei em apontamentos, creio, sem imodéstia, que nem tudo será inutil, apesar do grande mérito dos que me precederam, especialmente de um, a cujo selecto espírito aqui rendo a minha homenagem de saudade e admiração. Falo de Gabriel Pereira (autor do opúsculo "A Vila da Ericeira"), o bom e sagaz observador, o escritor de graciosas ironias, que entabolava ameno cavaco com o seu leitor, dizendo o muito que sabia como quem pouco sabia."

* - O termo já vem no dicionário de Morais: paravento feito de ramos para emparar as eiras. Na Ericeira os abrigos são feitos de caniços e às vezes de "maranhos" ou molhos de vides. Os fazendeiros mais abonados fazem-nos com urze.

O Archeologo português - 1914

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