segunda-feira, 27 de julho de 2009

Por caminhos da Ericeira (2)

Dentro da vila da Ericeira, que disfarça as rugas da velhice debaixo de incontáveis mantos de cal, há que ver e observar.
Não lhe falta primoroso pelourinho e tam ciosa dele que, para o defender dalguma cobiça ou desacato de má vizinhança, um ericeirense patriota preferiu enterrá-lo, em arriscada conjuntura, alguns palmos abaixo do chão! Sucedeu isto, segundo me informaram, em 1860 ou 1864 por ordem de Francisco Ericeira*.
Constava o monumento de três peças ajustáveis.
A primeira era um fuste cilíndrico com a base aderente, onde se esculpiam quatro folhas lisas como as patas românicas. Na parte superior deste fuste, quase no extremo, existe uma anilha composta dum astrágalo no meio de dois escapos. Esta parte da coluna tem a altura total de 1m,45 e a base quadrada tem de lado 0m,30; o diâmetro do fuste são 0m,255. A segunda peça é um tronco do fuste que constitui o complemento da peça anterior; tem apenas de comprido om,53. A terceira peça é o remate do pelourinho, e é a mais interessante. Tem duas partes, tecnicamente diferentes, embora constituam um só todo. A parte inferior é o capitel, a superior um pináculo. O capitel é composto do astrágalo circular, ao qual se segue uma moldura lisa, onde se espaçam quatro pequenos florões. Por cima correm duas molduras salientes de planta oitavada, uma das quais é o ábaco; por elas termina o capitel. Do plano superior ou mesa do ábaco, emerge verticalmente um cone, cuja base está inscrita no octógono do mesmo ábaco, cone ornado de duas ordens de cogulhos, em número de quatro cada uma, sendo os da primeira ordem mais avantajados do que os da segunda. O vértice deste pináculo está mutilado. As dimensões são as seguintes: altura do capitel 0m,35; diâmetro do ábaco 0m,43; altura do pináculo 0m,58.
Parece pertencer ao século XVI esta obra.
Passado o susto e não sei se adormecida alguma rivalidade, que neste símbolo de autonomia tivesse posto olhos de iconoclásticos, o belo monumento foi exumado em 1906 pelo grande amigo da Ericeira, Sr. Dr. Eduardo Burnay; mas dorme ainda na terra nua, se bem que debaixo de telhas amigas.
Aqui junto um esboço dele, feito à-la-minute, mas tal como me foi mostrado, em pedaços. Digno é de que se veja de novo erguido, mas eu não o quereria exposto à corrusão daqueles ventos salinos da Ericeira; ergam-no dentro dum edifício pertencente ao Estado ou à Vila.
Vejam-se figs. 1, 2 e 3.

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* Francisco José da Silva Ericeira (1800-1871) benemérito ericeirense, deixou nome na sua própria terra, onde ainda vivem descendentes. Foi oficial da marinha mercante com o posto de tenente honorário da Armada e o 1.º capitão do porto da Ericeira. A D. Maria II, de quem era partidário acérrimo, chamava desvanecido a sua rial comadre, por se ter dignado ser madrinha de uma sua filha, cujo padrinho foi Costa Cabral. A este dedicado filho da Ericeira, dizem que se deve a estrada para o Sobreiro. Empobreceu-se para o engrandecimento da sua terra, e na campa quiz que lhe lavrassem a seguinte paráfrase dos dois versos seguintes:
Eu só da vida fico contente,
Que a minha terra amei e a minha gente!
O 1.º verso autêntico é "Eu desta glória só fico contente"; o do epitáfio tem uma sílaba a menos.
Ao seu amigo, também ericeirense, Jaime Oliveira Lobo e Silva, agradeço as indicações biográficas
respeitantes a este seu conterrâneo, que já em 1907 tinha ali, na voz do povo, uma rua chamada do Ericeira.
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O Archeologo Português - 1914

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