sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Ericeira, 5 de Outubro de 1910



Num livro que li recentemente, encontrei uma descrição da fuga da Familia Real, no dia 5 de Outubro de 1910, e que mostra uma visão do drama, duma perspectiva menos institucional e mais emocional, que nos deixa a ideia clara, de que os Reis, são antes de tudo mais, pessoas, e não meros personagens da História sem alma nem «cor», como nos são apresentados nos livros da escola.
Deixo aos leitores do «Cantinho do Jagoz» essa passagem:


«... Ao chegarem à Ericeira, têm uma multidão à espera. Estão lá os pescadores de calça arregaçada e perna nua, os velhos de barrete negro de campino, as varinas de cabelo apanhado no alto da cabeça, as crianças ranhosas e descalças, cristadas do Sol, os cães escanzelados e sórdidos. Até quatro familias ciganas, com os patriarcas vestidos de negro e as mulheres de peito ao léu e as crias penduradas na cintura, desceram das arribas para se postar na estrada à espera deles. Tudo os veio ver; todos querem ter uma ideia de como se apresenta um rei, duas rainhas e um principe herdeiro. Que dilema! Que destino! Que drama tão cru e tão fantástico!
Maria Pia volta a gritar de susto. Parece-lhe ver na estrada um imenso e enfurecido cortejo revolucionário, disposto a barrar-lhes o caminho. Manuel tem os olhos fechados; é quase um moribundo. Só Maria Amélia, diante daquela multidão, consegue abir a boca e falar. Não sabe porém medir o efeito das suas palavras. Naquele momento espera tudo, ser obedecida ou trucidada pelo vagalhão ameaçador que tem pela frente.
- «Arreda! Arreda!»
A multidão afasta-se obedientemente e eles chegam salvos à praia, onde Afonso Henriques os espera ao largo, longe da barafunda, no iate real «Amélia», propriedade do Estado Português. Maria Pia na hora do embarque, rodeada de novo pela multidão da vila, leva as mãos ao estômago e grita, desamparada e frouxa.
- «J'ai faim! J'ai faim!»
Voltavam-lhe as angustias gástricas no momento dramático do fim. Como lhe chegarão as saudades pungentes das suas flores. É o instante em que ela, desesperada por ver os seus canteirinhos da Ajuda, já no exilio, pega num regador de latão e banha de lágrimas as flores desenhadas nos tapetes da cunhada Italiana.
Manuel chora quase incapaz de dar um passo e Amélia, a mãe, tenta desesperadamente aguentar os nervos, mas não consegue. Grita, chora e barafusta também ela. Barafusta contra o destino, esse destino que tudo lhe sonegou. Roubou-lhe a querida França, roubou-lhe o Brasil, roubou-lhe o marido e o filho e rouba-lhe agora Portugal e a sua coroa de Rainha. Revolta-se pois contra a sua fortuna, que nada lhe deu desde criança, a não ser tragédia e dor. Que figura tão crua e tão azeda, desta Maria Amélia! Não provoca compaixão como a sogra doida, mas na sua escuridão de fantasma adejante inspira um respeito gelado e um medo sagrado.
Afonso Henriques, aflito por se ver longe, nervoso com a ondulação forte que bate contra o casco do barco como rajada de metralha, lembrando-se da forma bárbara com que o irmão partira deste mundo, acena da amurada do barco e chama-os em desespero. Que cena atroz! Só o regicidio na história desta familia se lhe compara em dor e tragédia. Partem por fim a chorar os quatro, os ultimos Braganças, os pobres descendentes dos deuses que outrora dispuseram de Portugal como Zeus do Olimpo. Só retornarão depois de mortos, gelados, inertes, sem descendência, para irem repousar no panteão da familia, em S. Vicente.
Fechou-se assim para sempre a história de uma familia, que como a história da vida foi feita de dor, de lágrimas, de miséria, de absurdo e de uma gota de grandeza e de amor, que porventura tudo justifica e tudo para sempre redime.»

In: «A herança de D. Carlos» de António Cândido Franco, Editora «ÉSQUILO»

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Malha urbana até ao séc. XVIII (5)

Rua que se Encaminha para o Forte, Casal de D. Catarina

Esta rua corresponde ao que é hoje a rua de Santo António desde a capela para norte, passando pela actual travessa da Misericórdia até ao actual largo Domingos Fernandes. Encontramos alguma documentação datada do final do séc. XVII e princípio do séc. XVIII, referente a este topónimo. Toda esta área foi durante bastante tempo o "centro nevrálgico" da Ericeira. Aqui funcionou a Câmara da Ericeira ou Paços do Concelho nos terrenos ao lado da capela de Santo António (parte norte) que pertenceram à família Val-Rio. Desconhece-se se os Paços do Concelho da Ericeira funcionaram noutro local antes deste. O que se sabe é que em 11 de Junho de 1484, há uma referência aos Paços do Concelho relativa a uma audiência, "condenando" Gomes Leite, morador na Ericeira, a entregar uma pedra pertencente ao altar da Senhora de Santa Marta.
É muito possível que sejam estes os referidos Paços do Concelho, porque naquela época como já referimos, a Ericeira tinha como limites na parte sul a capela de Santo António, a nascente o largo do Oitão e a norte a actual rua do Norte e rua de Baixo.
Segundo Jaime Lobo e Silva, no ano de 1755 a Câmara já funcionava nas novas instalações junto ao Pelourinho (posto da G.N.R.). Apesar de outra referência do Mestre Jaime em que no dia 18 de Maio de 1814 foi dada de arrematação a obra da reconstrução da Casa da Câmara que havia muitos anos se achava arruinada, bem como uma outra, muito mais antiga, que servia de cadeia, localizada na calçada da Ribeira. Desta referência, podemos concluir que apesar da Câmara funcionar nas instalações junto ao Pelourinho, ainda haviam repartições que funcionavam no antigo local, nomeadamente a cadeia. Estas informações deixam-nos concluir que tanto as antigas instalações, como as mais modernas (que já eram antigas nos princípios do séc. XIX), não só estavam em mau estado, como eram insuficientes para o bom funcionamento da administração municipal daquela época.
Mais uma vez ao socorrermo-nos de Jaime Lobo e Silva, ficamos a saber que a 27 de Maio de 1815 foi inventariado o Arquivo Municipal que havia alguns anos se conservava aberto e andara por casas particulares, por ruína da antiga Casa da Câmara e que também tinha sido deliberado consultar um letrado para se saber o que conviria fazer em tal caso.
Através da investigação que temos feito à urbanização antiga da Ericeira, concluímos que pela parte norte das antigas instalações da Câmara situadas nesta rua, havia uma travessa no sentido nascente poente partindo da actual rua de Santo António até à actual travessa da calçada da Praia dos Pescadores (perto da entrada para os escritórios dos Serviços de Lotas e Vendagens), conforme podemos verificar através da planta do ano de 1897. Esta travessa, foi mais tarde ocupada parcialmente (lado nascente), como podemos verificar através da planta, pela moradia da família Vale-Rio em data anterior à sua edificação.
Nos finais do primeiro quartel do séc. XIX (1822), esta travessa era conhecida pela rua do Casal de Dona Catarina. Isto devido ao casal pertencer a Catarina de Jesus Franca, existente na parte norte desta travessa, ficando pela parte sul as instalações da Câmara. Dona Catarina foi casada com António da Costa Morgado, avós de Ana Maria Val-Rio, esposa de Luís Quaresma Val-Rio.
No princípio do séc. XX (1909), a restante parte desta travessa (lado poente), assim como os terrenos circundantes, foram adquiridos por particulares, como podemos verificar através da documentação que conseguimos localizar durante a nossa investigação. Um desses documentos diz o seguinte: "Luís Quaresma Val-Rio e Tancredo da Silva Jorge, possuidores de dois prédios urbanos mistos com frente para o largo do Forte, declaram pretender adquirir por meio de compra em hasta pública com as formalidades legais, uma porção de terreno municipal, exclusivamente para ajardinar, o qual é junto ao referido largo do Forte e confronta a norte com a rua da Misericórdia, pelo sul com a calçada da Praia, pelo nascente com os referidos prédios e pelo poente com a dita calçada da Praia e o dito forte. Foi instaurado o processo para a venda em hasta pública."
Ainda relacionado com esta rua que nos fins do séc. XVIII, princípios do séc. XIX tinha o topónimo que se Encaminha para o Forte, devemos salientar que era nesta rua que se situava o velho palácio dos morgados da Ericeira, o qual foi demolido em 1902. Era a única casa brasonada que existia na Ericeira; depois da sua destruição foi construído o casão da armação da firma Rosa & Comandita, onde actualmente funciona o armazém de madeiras e produtos de construção, pertencente aos descendentes do sr. José dos Santos Caré.
Este morgadio foi instituído como já dissemos, por João de Brito e Sousa Noronha, que o deixou em herança à sua filha ilegítima dona Juliana de Brito e Sousa Noronha, casada com o tenente-coronel de infantaria Álvaro José de Serpa Sotto-Mayor. Dona Juliana nasceu na Ericeira e faleceu no dia 16 de Dezembro de 1784. Deixou a seguinte descendência: Diogo João de Serpa e Brito Noronha, oficial de infantaria e fidalgo da Casa Real, morreu na Índia; Luís António de Serpa e Brito Noronha, casado com Maria Rita de Freitas Manuel de Aboím; Fernando José de Serpa e Brito Noronha, falecido na Ericeira a 14 de Agosto de 1807.
O senhor do morgadio da Ericeira era solteiro e estava interdito por demência, tendo sido seu herdeiro o seu mais próximo parente, o capitão-mor de Sintra, António Rufino Monteiro de Resende Cabral de Unhão e Noronha, que por sua vez deixou em herança à sua filha dona Antónia Desidéria (adiante falaremos desta senhora), casada com o Morgado da Quinta dos Chãos de Santo Isidoro, o tenente-coronel de milícias de Torres Vedras José Francisco de Assis Gorjão Barros de Carvalho, passando assim para os descendentes desta família o Morgadio da Ericeira.

Leandro Miguel dos Santos
"Toponímia Histórica da Vila da Ericeira"

(foto de João B.)

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Malha urbana até ao séc. XVIII (4)

Largo do Oitão (continuação)

Também é possível que a lenda não tenha origem em D. António, Prior do Crato, mas sim no ermitão de S. Julião, Mateus Álvares, que como sabemos ficou célebre por ter sido um dos falsos D. Sebastião, conhecido pelo rei da Ericeira e que ao contrário de D. António, foi preso.
Arrastando atrás de si algum povo da região da Ericeira, chegou mesmo a realizar o seu casamento com a filha de um rico lavrador de Rio de Mouro chamado Pedro Afonso, tendo sido coroada rainha com a coroa de Nossa Senhora. Mais tarde deu-se uma pequena batalha no vale da Senhora do Ó em que os oitocentos homens seguidores de Mateus Álvares foram derrotados numa emboscada, pelos quatrocentos soldados castelhanos bem armados.
A alguns destes homens foi-lhes dado o perdão, outros, foram lançados nos serviços forçados das galés e os restantes, entre eles Mateus Álvares, foram presos e mortos para exemplo de todo o reino, refreando algum patriotismo que o anónimo povo português nunca deixou de ter, lutando sempre contra os castelhanos.
Mateus Álvares foi enforcado em Lisboa no dia 14 de Junho de 1585, depois de lhe terem cortado a mão direita, a que tinha assinado provisões e alvarás em nome de D. Sebastião. A sua cabeça ficou durante um mês pregada na forca e foi esquartejado em quatro bocados, expostos em cada uma das "quatro portas" da cidade de Lisboa. No dia seguinte foram enforcados e esquartejados os restantes homens que sofreram a pena capital. Só na Ericeira foram enforcados vinte destes homens.
Mas também neste episódio encontramos alguma contradição relativamente ao tal rei que fora preso junto ao largo do Oitão.
Mateus Álvares não foi preso na Ericeira, segundo a Carta de Perdão dada por Filipe II que menciona que Pedro Afonso foi preso no lugar do Bombarral e o ermitão Mateus Álvares na vila de Colares. Será que também aqui o povo adulterou os acontecimentos , tendo sido preso na zona da Ericeira, não o falso rei mas sim alguns dos seus seguidores e como tal os castelhanos destruíram as suas casas, salgando em seguida o terreno onde estavam edificadas? Ou teria aí residido o ermitão Mateus Álvares? O certo é que esta lenda tenha ou não origem nestes dois acontecimentos históricos, prevaleceu viva até ao princípio do sé. XVIII.
Estes acontecimentos tiveram lugar nos finais do séc. XVI. Antes destes factos, já a Ericeira se tinha expandido para o norte através da rua do Norte e da rua de Baixo até ao princípio da actual rua Florêncio Granate e com pouca expansão para norte e nascente do largo do Oitão.
Terá sido simples coincidência ou a lenda do tal rei que viveu e foi preso junto a este largo, tem origem noutros factos históricos mais antigos, que se desconhecem? O que é certo é que só a partir dos princípios do séc. XVIII se começou a urbanizar as áreas a nascente e norte deste largo.
Leandro Miguel dos Santos
"Toponímia Histórica da Vila da Ericeira"
(foto de João B.)

Malha urbana até ao séc. XVIII (3)

Largo do Oitão

Correspondia este pequeno largo ao actual topónimo Jaime d'Oliveira Lobo e Silva. Como o topónimo deixa compreender (significa parte lateral de um edifício), esta área teria sido durante bastante tempo, uma parte dos limites da Ericeira. Através de várias pesquisas que temos feito sobre a urbanização antiga da Ericeira, chegámos à conclusão que tanto para nascente como principalmente para norte deste largo, não houve muita urbanização até ao séc. XVIII.
Este facto não é muito explicável, se bem que Jaime Lobo nos tenha deixado escrito o seguinte motivo histórico: "Nos princípios do séc. XVIII havia na Ericeira junto ao largo do Oitão um chão salgado do qual se dizia, naquele tempo, que ali estivera construída uma casa que servira de residência a um rei que fora preso e que aquele chão fora salgado para nunca mais ali se poder edificar. E, pedindo alguns moradores licença à Câmara para ali edificarem casas, houve dúvidas sobre a concessão de tais licenças. Os requerentes recorreram ao conde donatário que mandou a Câmara que o informasse acerca do assunto e se havia algum impedimento.
A Câmara informou que, dos seus arquivos nada constava, pelo que foram concedidas as licenças.
Também se dizia que naquele chão salgado, estivera construída uma casa que servira de moradia aos capitães que vieram com o exército que a Inglaterra mandara em auxílio de D. António Prior do Crato. Mas um dos requerentes informou o conde donatário de que o exército inglês não havia desembarcado na Ericeira mas sim em Peniche, onde seguira para Torres Vedras e dali para Lisboa, sem ter passado pelas povoações da beira-mar.
Apesar do exército inglês não ter passado pela Ericeira, isso não invalida a lenda do tal rei que fora preso. Esta lenda deveria ter existido fortemente enraizada no povo. Todas as lendas têm alguma verdade, apesar de, lendas que são, não poderem ser comprovadas.
Todos nós sabemos que o D. António Prior do Crato, andou vários meses fugido, clandestino em Portugal procurado pelos espanhóis antes de poder fugir para o estrangeiro através do porto de Setúbal(1).
É muito possível que D. António se tenha refugiado na Ericeira, até porque era ele o donatário da Vila nessa época, por herança de seu pai o infante D. Luís. O que não é compreensível é que a história contada na Ericeira diga que o rei fora preso. Ora D. António não chegou a ser preso, apesar dos espanhóis e de alguns traidores portugueses terem tentado prendê-lo, não o conseguiram, pois ainda houve um punhado de patriotas que o protegeram e salvaram desse trágico destino. Se na realidade D. António passou pela Ericeira e os espanhóis souberam, como tal, destruíram e arrasaram a casa ou casas em que esteve escondido, salgando em seguida o chão. Com o tempo a lenda foi-se adulterando de escondido para preso.
(continua)
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(1) - Segundo alguns consagrados historiadores, embarcou em Setúbal. Outros dizem em Viana do Castelo.

Leandro Miguel dos Santos
"Toponímia Histórica da Vila da Ericeira"

(foto de João B.)

Malha urbana até ao séc. XVIII (2)

Rua S. Sebastião ou Rua do Forte (continuação)

Palhano Cordovil, no Dicionário Geográfico de Portugal diz-nos também o seguinte: "A Vila da Ericeira tem o privilégio de não fazer soldados para o serviço real, por serem os moradores obrigados à guarnição do seu forte."
Este costume dever-se-ia ter mantido até à década dos anos sessenta do séc. XIX.
Na investigação que fizemos, encontrámos documentação datada de 31 de Dezembro de 1863, referindo que em todo o Concelho havia 20.563 habitantes, sendo a população da Ericeira de 3.069 habitantes, contribuindo esta, só com 5 recrutas por ano para o serviço militar obrigatório.(1)
Quanto a João de Brito e Sousa de Noronha, sabemos que foi o primeiro governador militar deste forte. Era natural da Ericeira, filho de Luís de Brito e Sousa de Noronha, também natural da Ericeira, e que foi Tabelião e Provedor da Fazenda do Contrabando. Como já descrevemos, responsável pela defesa da Vila da Ericeira, foi casado com dona Maria Luísa Ferreira de Barbuda natural de Peniche, de quem teve numerosa descendência. O seu filho João de Brito e Sousa de Noronha sucedeu-lhe como responsável pela defesa da Vila da Ericeira, tendo falecido em 7 de Outubro de 1697, solteiro, deixando muitas propriedades com que instituiu um morgadio a favor da sua filha ilegítima dona Juliana de Brito e Sousa de Noronha, primeira Morgada da Ericeira (Mais adiante voltaremos a falar da descendência desta Morgada). A partir de meados do séc. XIX, o forte foi perdendo a importância militar que tinha no passado apenas servindo para albergar alguns adidos, tendo sido o último governador militar o major na reserva Joaquim Urbano de Carvalho.
Junto ao forte pela parte norte foi construída por volta do primeiro quartel do séc. XIX, uma residência para os governadores militares. No ano de 1822 já esta casa existia, sendo governador naquela época José Joaquim Silveira Carvalho casado com dona Ana da Silva. Quando em 1880 o forte foi desguarnecido, nesta residência ficou instalada a Filarmónica da Ericeira. Mais tarde, funcionou a Escola Primária do sexo feminino até 1891, data da instalação da Guarda-Fiscal na Ericeira, pertencendo à 5ª Companhia do 1º Batalhão da Guarda-Fiscal de Lisboa. Muitos militares desta corporação passaram pela Ericeira, prestando importantes serviços à comunidade, sendo de assinalar os seguintes: Tenente Gomes da Costa(2), Major Florêncio Geraldo da Silva Granate(3) e Tenente Homero Augusto Lopes das Neves(4).
Ainda relacionado com este forte, devemos salientar alguns acontecimentos ou hábitos da Ericeira. Até ao último quartel do séc. XIX, nas cerimónias da Semana Santa era uso no Sábado de Aleluia e após a missa distribuir-se água benta aos fiéis que acorriam à Igreja de S. Pedro. Estes, depois do ofício divino percorriam a Vila parando no largo fronteiro ao forte onde os soldados da guarnição procediam à queima do "Judas" um grotesco manequim pendurado no meio do largo, bem recheado de pólvora e outros materiais inflamáveis e detonantes e que com o som da música e de muitos foguetes ardia estrondosamente(5).
No recinto sul ao lado do forte, temos conhecimento que desde sempre foi o local escolhido para o sinaleiro do porto executar o seu trabalho, tanto na saída das embarcações como na entrada do porto em tempo de mar bravo.
É neste mesmo recinto que os pescadores têm o hábito de se reunir, ora olhando o estado do mar, ora conversando sobre as pescarias e outros assuntos. Este costume já vem de longa data. Jaime Lobo e Silva deixou-nos alguma documentação em que descreve que era neste local que os pescadores da parte norte da Vila se reuniam, conversando de pé ou sentados em bancos de alvenaria. Já os pescadores da parte sul tinham como local habitual para essas conversas a Pedra do Cebo, de que adiante falaremos.

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(1) - Indicação específica do documento.
(2) - Tenente Gomes da Costa, fundou em 5 de Março de 1893 um semanário na Ericeira. Contribuiu também com algumas iniciativas culturais na Ericeira. Foi um homem muito culto. No Arquivo-Museu da Ericeira existem algumas pinturas e desenhos deste ilustre militar que ficou conhecido na História Contemporânea como chefe militar da revolução que começou em Braga a 28 de Maio de 1926, pondo fim a uma grande instabilidade que reinava em Portugal durante a Primeira República.
(3) - Major Florêncio Geraldo da Silva Granate: militar que muito contribuiu para determinados melhoramentos na Ericeira, nomeadamente na parte norte da Vila, junto à praia do Algodio.
(4) - Tenente Homero Augusto Lopes das Neves: um dos principais dirigentes (vogal representante da Ericeira junto da Câmara) para a construção do mercado coberto, que há muito tempo o povo da Ericeira vinha reclamando e ao qual a Câmara se opôs, apesar desta não precisar dispender nenhuma verba para esta obra. A mesma começou a ser construída no dia 18 de Janeiro de 1932. O tenente Homero foi um dos grandes obreiros desta construção a cargo do comerciante Eugénio Caré. Assim como foi por diligências suas, junto das entidades em Lisboa, que se construiu a muralha das arribas exterior ao forte, em 1941. Deixou descendência na Ericeira, a sua filha, Maria Amélia Fernandes Lopes das Neves.
(5) - Do livro: Arte Sacra, Santa Casa da Misericórdia da Vila da Ericeira, 1944, sérgio Gorjão (Org.).

Leandro Miguel dos Santos
"Toponímia Histórica da Vila da Ericeira"
(fotos de João B.)

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Malha urbana até ao séc. XVIII (1)

Rua S. Sebastião ou Rua do Forte

Correspondia esta rua ao actual largo Domingos Fernandes, prolongando-se para a rua de Baixo. Primeiramente a rua chamou-se S. Sebastião, antes da construção do forte Nossa Senhora da Natividade. O topónimo forte deriva do facto da proximidade desta fortaleza em relação a toda esta área. Este forte foi construído no séc. XVII (1670), na regência de D. Pedro II.
Encontramos alguma documentação sobre o denominado forte de Nossa Senhora da Natividade. Esta fortaleza foi construída para defesa do porto. Naqueles tempos era habitual os corsários fazerem as suas incursões e assaltos em toda a costa portuguesa, também serviu para a consolidação da Restauração Nacional, em relação aos espanhóis, guerra que durou imensos anos, desde a revolta dos conjurados em 1 de Dezembro de 1640 até 1668 quando foi assinado o tratado com a Espanha. Durante essa época, construíram-se vários fortes na costa portuguesa, como por exemplo; o forte de S. Pedro de Milreu e o de Santa Susana (conhecido como de S. Lourenço).
O forte foi guarnecido com várias peças de artilharia, algumas delas em bronze, que mais tarde (1880) foram transferidas para Lisboa, sendo as restantes, as de ferro, enterradas nas ruas da Ericeira, nomeadamente junto ao forte. Há poucos anos, quando se fez o novo manilhamento do saneamento básico, estas peças de ferro foram encontradas e colocadas nas Furnas, pela Junta de Freguesia, apontadas para o mar.
Já antes da construção deste forte, em 1646, o capitão Lucas Ferreira de Macedo, por ordem do rei, fez entrega à Câmara de um quintal de pólvora e de 40 balas, tudo para servir duas peças de artilharia que o rei tinha instalado nesta Vila. Este material foi logo entregue ao capitão Luís de Brito natural e morador na Vila, para a sua defesa e dos navios que a ela se acolhem*.
Antes da construção do forte, como podemos comprovar, a Vila da Ericeira já era uma praça de armas marítima desde os tempos mais antigos. Na década dos anos setenta do século XX, quando se deu um grande desassoreamento na praia dos Pescadores (dentro de água, na antiga praia), foram encontradas várias destas balas. Algumas ainda estão na posse de moradores da Ericeira, uma encontra-se depositada no Arquivo-Museu da Santa Casa da Misericórdia da Ericeira.
Ainda relacionado com este forte: "26 de Janeiro de 1680, João de Sousa Noronha, como Ouvidor da Vila e Governador do forte comunica à Câmara que o Conde D. Fernando de Menezes pretende obter do Príncipe Regente um Alvará que escuse os moradores do serviço real, se eles se comprometerem a fazer a guarnição do forte. O povo aceitou a proposta."**
(continua)
______________________
* - Anais da Vila da Ericeira, Jaime Lobo e Silva.
** - Extraído do mesmo livro. Por essa época, tanto o ouvidor (juiz) como o governador do forte eram nomeados nos seus postos pelo donatário da Ericeira, ou seja, o conde da Ericeira, sendo ele que prestava contas dos seus ofícios.

Leandro Miguel dos Santos
"Toponímia Histórica da Vila da Ericeira"
(fotos de João B.)

domingo, 9 de agosto de 2009

Apontamentos para a história do Bairro de Santa Marta

O actual Bairro de Santa Marta era, em tempos antigos, uma povoação distinta e separada da Ericeira e chamava-se o lugar de Santa Marta. É assim que, em documentos dos séculos XVI, XVII e parte do XVIII, vem mencionado.
A Ericeira (vila) ocupava então uma área que, aproximadamente, era limitada ao norte pelo actual Largo do Forte, ao sul pela Ermida de Santo António, ao poente pelas ribas e ao nascente pelo Largo do Pelourinho. A Fontaínha também era uma povoação separada, e chamava-se o lugar do Rio do Calva.
O terreno compreendido entre as três povoações, era baldio ou constituído por grandes quintais e cerrados.
A primeira Ermida de Santa Marta era situada num local que, actualmente, está dentro do Parque das Águas, e parece ter datado dos fins do século XV.
Em 1649 eram ermitães de Santa Marta, Silvestre Gonçalves e sua mulher, Maria de Mattos; e em 9 de Março daquele ano fez a Câmara o inventário de todos os objectos do culto, ali existentes, tais como: paramentos, alfaias, etc.; e, pelo que se vê do referido inventário, não era nada mau o que ali existia.
A Câmara era quem administrava a Ermida e nomeava os ermitães.
Ali se faziam festas, e por essas ocasiões se realizavam arraiais nocturnos, com fogueiras, bailaricos, etc.
Em 20 de Junho de 1673 um Alvará Régio instituíu a feira de S. Tiago, que ali se realizava em 24 e 25 de Julho de cada ano; e em Janeiro de 1675, os ermitães que então eram Domingos da Silva e sua mãe Gracia da Silva, casada com Tomé Dias, requereram à Câmara dizendo que, quando foram apresentados na dita Ermida se obrigaram a tirar uma provisão para haver feira no rossio de Santa Marta, e porque a Câmara tinha a dita provisão para a dita feira, no que houvera grande dispêndio, e ainda se estava devendo a quantia de 29 mil e tantos réis, eles ditos ermitães ofereciam para aquele pagamento a quantia de 10 mil réis, etc., etc.
Esta primitiva Ermida de Santa Marta, aí por 1760 já se encontrava muito arruinada, pelo que foi demolida, e pouco depois começou a construção da actual, no local em que ora a vemos.
É tradição que as telhas desta nova Ermida foram compradas com o produto da venda do peixe recapturado por um cão, pois antigamente os pescadores levavam nos barcos uns cães de água para recapturar o peixe que se escapava das redes.
Também consta por tradição que esta nova Ermida esteve para ser erigida em Igreja Paroquial, estabelecendo-se ali uma freguesia.
Aos terrenos em volta da Ermida se dava antigamente o nome de mato de Santa Marta, e ainda nos fins do século passado ali se viam muitos casqueiros (tanques especiais para encascar as redes), e muitas cruzetas, ou estacas, para enxugar e corar ao sol, as mesmas redes. Ao sul da actual Ermida havia dois moinhos de vento; ainda existiam no 1º quartel do séc. XIX estes moinhos.
Em 1811 a Câmara concedeu licença a um cabouqueiro para extrair pedra do rossio de Santa Marta, pedra que era destinada a mós de moinho, devendo o referido cabouqueiro pagar à Câmara 200 réis por cada mó que dali extraísse.
Em Setembro de 1818, o 2º Visconde de Balsemão, Luiz Máximo Alfredo de Sousa Pinto, que então tinha residência na Ericeira, mandou lançar os fundamentos de um templo dedicado a São Luiz, Rei, e a santa Isabel, Rainha, no bairro de Santa Marta.
Este novo templo não chegou a ser concluído e era situado no terreno hoje ocupado pelo pátio da garagem de A. Gaspar, onde ainda há poucos anos, se viam os alicerces dele.
Junto ao local denominado Carreira do Navio, houve antigamente estaleiros de construção naval, onde se construíram muitas rascas e outras embarcações. Consta que a última embarcação que ali se construiu, foi a rasca Ericeira, pertencente a Francisco José da Silva Ericeira, que a mandou para o Brasil. A indústria da construção naval era antiga na Ericeira, pois os livros da Câmara, dos princípios do século XVI, já falam dessa indústria; e o foral dado à Ericeira por D. Manuel, também se refere à mesma indústria.
Também em Santa Marta, quase junto às furnas, existiu por muitos anos o Matadouro municipal, que aí por 1878 ou 79 ainda funcionava, sendo demolido pouco depois.
A indústria da cordoaria foi uma das mais desenvolvidas antigamente, na Ericeira, e a última que existiu era situada em Santa Marta.
Em 20 de Janeiro de 1898, um Alvará concedeu autorização a António Lopes da Costa, industrial em Lisboa, para poder explorar por tempo ilimitado, as águas minero-medicinais de Santa Marta, que o referido Lopes havia encontrado em um poço que mandara abrir numa propriedade que ele ali possuía.
Lopes da Costa adquiriu todo o terreno que constitui o actual Parque, e o mandou vedar por um muro, tal como agora existe.
No primeiro decénio do século actual foi construída em Santa Marta a primeira Praça de Touros que existiu na Ericeira.
Era construída em madeira e foi demolida há poucos anos. Ali se deram muitas corridas com grande concorrência, principalmente nas épocas balneares.
Em Outubro de 1929 a Comissão de Iniciativa e Turismo da Ericeira, coadjuvada pela Divisão Hidráulica do Tejo, deu princípio às obras de construção da esplanada ou avenida, circundando parte do bairro de Santa Marta, pelos lados do mar e sul.
A esta avenida foi dado o nome de "Avenida de Frei Fernão Rodrigues Monteiro", em memória daquele Grão-Mestre da Ordem de Aviz que, no ano de 1229, concedeu o 1º Foral à Vila da Ericeira.
Ultimamente foi transferida para Santa Marta a tradicional feira de São Tiago que, tendo sido, em seus princípios, ali instituída, como acima digo, se realizou depois no Jogo da Bola e na Praça dos Condes de Ericeira.
Há muitos e muitos anos que a Ericeira, com as duas pequenas povoações dos seus arrabaldes de norte e sul, constitui uma única povoação que tem, actualmente, um pouco mais de 1 quilómetro de extensão, e sempre em todos os tempos o conjunto das três povoações constituiu um único povo, a mesma gente, as mesmas famílias; todavia, quem observar bem, talvez note uma certa diferença entre a gente de Santa Marta e a da Fontaínha.
O Bairro de Santa Marta era, antigamente, constituído, como actualmente o da Fontaínha, por gente da classe piscatória. Hoje não. Em Santa Marta, hoje, poucos pescadores se encontrarão. São quase todos marítimos, o que faz a sua diferença.
As mulheres do norte da Vila (Fontaínha) são conhecidas no lado do sul (Santa Marta) pela antiga e pitoresca designação de: catueiras do cabo do norte. Ignoro a origem de tal alcunha.
No bairro de Santa Marta nasceu o nosso patrício Manuel Franco, por alcunha o cutêta, oficial da marinha mercante.
Inculto e um pouco rude, era todavia um excelente oficial náutico e muito amigo da sua terra.
Republicano ferrenho, dispendeu, segundo se diz, grande parte dos seus bens adquiridos nas suas viagens de muitos anos, em assuntos de política local. Foi Vereador, Provedor da Misericórdia, e exerceu grande influência política na Ericeira nos primeiros anos da implantação da República.
Foi comandante do navio Alagôas, da marinha mercante brasileira, e como tal, encarregado pelo Governo Brasileiro de transportar para a Europa o deposto Imperador Dom Pedro II.
Era com grande desvanecimento que Manuel Franco recordava, amiúde, esse facto, dizendo na sua pitoresca linguagem: Quando eu trouxe o Pedro para a Europa...... etc. O Governo brasileiro encarregou-me de trazer para cá o Pedro.....etc.
Apraz-me deixar aqui registada uma prova da dedicação que este homem tinha pela sua terra. Reconhecida, como ainda hoje, a necessidade de se construir uma estrada da Ericeira para o norte, Manuel Franco ofereceu, por empréstimo sem juros, o capital necessário para essa construção, e à sua custa mandou um engenheiro proceder aos respectivos estudos, levantar a planta e fazer orçamentos. A estrada não se fez, mas a boa vontade daquele ericeirense parece-me ficar sobejamente demonstrada com estes factos.
Para acabar estas notícias do bairro de Santa Marta, resta-me falar do culto de Nossa Senhora das Necessidades, estabelecido na respectiva Ermida.
As notícias que tenho sobre o assunto são, porém, tão complexas e tão contraditórias, estabelecendo tal confusão, que não me julgo habilitado por ora, a dizer coisas sobre tal assunto.
Pode ser que um dia chegue a deslindar a meada, e então, falaremos.

"Tia Maria Ásquinha"
Jaime O. Lobo e Silva
Novembro de 1932

Por caminhos da Ericeira (3)

Gosto sempre de percorrer as ruas das vilas ou aldeias onde estaciono; será raro que não encontre algum elemento de estudo, mais ou menos interessante. Nesta pequena povoação marítima encontrei, pois, também que trasladar para o caderno.
Na Travessa do Pelourinho, há uma verga de porta datada; parece porém que as letras foram refundadas para ficarem dentro de uma cercadura ou escudete, de estilo que me parece posterior à data; e o escòdado da pedra ainda parece mais moderno.
Ao lado, há outra porta com data na verga, mas intacta (158...?).
Na Travessa da Misericórdia, nova padieira se encontra com um peixe em relevo e a data gravada. Vejam-se as figs. 4 e 5.
A capela de Santa Marta é edificação do fim do século XVIII. A primitiva estava onde hoje é um estabelecimento de águas medicinais. Vi a cópia dum documento de 1484, donde se pode inferir a existência duma capela anterior a esta data; esse documento versa sobre a posse duma pedra muyto petecente pã o altar da dita Santa. Dos dizeres do documento, conclui-se que era uma pedra avantajada, que aparecera soo ho chaão debaixo de huu forno. Já foi procurada sem resultado por um amante das antiguidades da sua terra, o Sr. Jaime de Oliveira Lôbo e Silva, pesquisador tam solícito como modesto, a quem se deve a cópia desse documento*.

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* - No Arch. Port., XIV, 320, publicou o mesmo Senhor alguns curiosos documentos para a história da Ericeira e neste fascículo publica outros.
O Archeologo Português - 1914
Algumas notas: As inscrições das figuras 4 e 5 já não são visíveis nos locais mencionados, assim como o estabelecimento de águas medicinais, em Santa Marta. Quanto à história deste estabelecimento, será alvo de um post a editar em momento oportuno.

1503

2 de Novembro de 1503

... em sessão desta data foi presente à Câmara a conta da despesa feita, à custa da mesma Câmara, com o Procurador dos Forais e respectivo Escrivão que, por mandado do Rei, vieram à Ericeira fazer uma inquirição acerca do assunto de que estavam encarregados.
Esta despesa foi a seguinte:

Pão ................................... 88 réis
Duas frangas ........................ 36 réis
Uma galinha ........................ 28 réis
Polvos ............................... 20 réis
Um congro (safio) ................. 25 réis
Mel .................................. 40 réis
Inquirição de 10 testemunhas ... 82 réis


"Anais da Vila da Ericeira"Jaime d'Oliveira Lobo e Silva1932