sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Ericeira, 5 de Outubro de 1910



Num livro que li recentemente, encontrei uma descrição da fuga da Familia Real, no dia 5 de Outubro de 1910, e que mostra uma visão do drama, duma perspectiva menos institucional e mais emocional, que nos deixa a ideia clara, de que os Reis, são antes de tudo mais, pessoas, e não meros personagens da História sem alma nem «cor», como nos são apresentados nos livros da escola.
Deixo aos leitores do «Cantinho do Jagoz» essa passagem:


«... Ao chegarem à Ericeira, têm uma multidão à espera. Estão lá os pescadores de calça arregaçada e perna nua, os velhos de barrete negro de campino, as varinas de cabelo apanhado no alto da cabeça, as crianças ranhosas e descalças, cristadas do Sol, os cães escanzelados e sórdidos. Até quatro familias ciganas, com os patriarcas vestidos de negro e as mulheres de peito ao léu e as crias penduradas na cintura, desceram das arribas para se postar na estrada à espera deles. Tudo os veio ver; todos querem ter uma ideia de como se apresenta um rei, duas rainhas e um principe herdeiro. Que dilema! Que destino! Que drama tão cru e tão fantástico!
Maria Pia volta a gritar de susto. Parece-lhe ver na estrada um imenso e enfurecido cortejo revolucionário, disposto a barrar-lhes o caminho. Manuel tem os olhos fechados; é quase um moribundo. Só Maria Amélia, diante daquela multidão, consegue abir a boca e falar. Não sabe porém medir o efeito das suas palavras. Naquele momento espera tudo, ser obedecida ou trucidada pelo vagalhão ameaçador que tem pela frente.
- «Arreda! Arreda!»
A multidão afasta-se obedientemente e eles chegam salvos à praia, onde Afonso Henriques os espera ao largo, longe da barafunda, no iate real «Amélia», propriedade do Estado Português. Maria Pia na hora do embarque, rodeada de novo pela multidão da vila, leva as mãos ao estômago e grita, desamparada e frouxa.
- «J'ai faim! J'ai faim!»
Voltavam-lhe as angustias gástricas no momento dramático do fim. Como lhe chegarão as saudades pungentes das suas flores. É o instante em que ela, desesperada por ver os seus canteirinhos da Ajuda, já no exilio, pega num regador de latão e banha de lágrimas as flores desenhadas nos tapetes da cunhada Italiana.
Manuel chora quase incapaz de dar um passo e Amélia, a mãe, tenta desesperadamente aguentar os nervos, mas não consegue. Grita, chora e barafusta também ela. Barafusta contra o destino, esse destino que tudo lhe sonegou. Roubou-lhe a querida França, roubou-lhe o Brasil, roubou-lhe o marido e o filho e rouba-lhe agora Portugal e a sua coroa de Rainha. Revolta-se pois contra a sua fortuna, que nada lhe deu desde criança, a não ser tragédia e dor. Que figura tão crua e tão azeda, desta Maria Amélia! Não provoca compaixão como a sogra doida, mas na sua escuridão de fantasma adejante inspira um respeito gelado e um medo sagrado.
Afonso Henriques, aflito por se ver longe, nervoso com a ondulação forte que bate contra o casco do barco como rajada de metralha, lembrando-se da forma bárbara com que o irmão partira deste mundo, acena da amurada do barco e chama-os em desespero. Que cena atroz! Só o regicidio na história desta familia se lhe compara em dor e tragédia. Partem por fim a chorar os quatro, os ultimos Braganças, os pobres descendentes dos deuses que outrora dispuseram de Portugal como Zeus do Olimpo. Só retornarão depois de mortos, gelados, inertes, sem descendência, para irem repousar no panteão da familia, em S. Vicente.
Fechou-se assim para sempre a história de uma familia, que como a história da vida foi feita de dor, de lágrimas, de miséria, de absurdo e de uma gota de grandeza e de amor, que porventura tudo justifica e tudo para sempre redime.»

In: «A herança de D. Carlos» de António Cândido Franco, Editora «ÉSQUILO»

1 comentário:

João Bonifácio disse...

Olá Zé Henriques
Excelente artigo sobre um drama que ligou a nossa Ericeira para sempre à monarquia portuguesa.
Estás de volta. Bem vindo.