domingo, 9 de agosto de 2009

Apontamentos para a história do Bairro de Santa Marta

O actual Bairro de Santa Marta era, em tempos antigos, uma povoação distinta e separada da Ericeira e chamava-se o lugar de Santa Marta. É assim que, em documentos dos séculos XVI, XVII e parte do XVIII, vem mencionado.
A Ericeira (vila) ocupava então uma área que, aproximadamente, era limitada ao norte pelo actual Largo do Forte, ao sul pela Ermida de Santo António, ao poente pelas ribas e ao nascente pelo Largo do Pelourinho. A Fontaínha também era uma povoação separada, e chamava-se o lugar do Rio do Calva.
O terreno compreendido entre as três povoações, era baldio ou constituído por grandes quintais e cerrados.
A primeira Ermida de Santa Marta era situada num local que, actualmente, está dentro do Parque das Águas, e parece ter datado dos fins do século XV.
Em 1649 eram ermitães de Santa Marta, Silvestre Gonçalves e sua mulher, Maria de Mattos; e em 9 de Março daquele ano fez a Câmara o inventário de todos os objectos do culto, ali existentes, tais como: paramentos, alfaias, etc.; e, pelo que se vê do referido inventário, não era nada mau o que ali existia.
A Câmara era quem administrava a Ermida e nomeava os ermitães.
Ali se faziam festas, e por essas ocasiões se realizavam arraiais nocturnos, com fogueiras, bailaricos, etc.
Em 20 de Junho de 1673 um Alvará Régio instituíu a feira de S. Tiago, que ali se realizava em 24 e 25 de Julho de cada ano; e em Janeiro de 1675, os ermitães que então eram Domingos da Silva e sua mãe Gracia da Silva, casada com Tomé Dias, requereram à Câmara dizendo que, quando foram apresentados na dita Ermida se obrigaram a tirar uma provisão para haver feira no rossio de Santa Marta, e porque a Câmara tinha a dita provisão para a dita feira, no que houvera grande dispêndio, e ainda se estava devendo a quantia de 29 mil e tantos réis, eles ditos ermitães ofereciam para aquele pagamento a quantia de 10 mil réis, etc., etc.
Esta primitiva Ermida de Santa Marta, aí por 1760 já se encontrava muito arruinada, pelo que foi demolida, e pouco depois começou a construção da actual, no local em que ora a vemos.
É tradição que as telhas desta nova Ermida foram compradas com o produto da venda do peixe recapturado por um cão, pois antigamente os pescadores levavam nos barcos uns cães de água para recapturar o peixe que se escapava das redes.
Também consta por tradição que esta nova Ermida esteve para ser erigida em Igreja Paroquial, estabelecendo-se ali uma freguesia.
Aos terrenos em volta da Ermida se dava antigamente o nome de mato de Santa Marta, e ainda nos fins do século passado ali se viam muitos casqueiros (tanques especiais para encascar as redes), e muitas cruzetas, ou estacas, para enxugar e corar ao sol, as mesmas redes. Ao sul da actual Ermida havia dois moinhos de vento; ainda existiam no 1º quartel do séc. XIX estes moinhos.
Em 1811 a Câmara concedeu licença a um cabouqueiro para extrair pedra do rossio de Santa Marta, pedra que era destinada a mós de moinho, devendo o referido cabouqueiro pagar à Câmara 200 réis por cada mó que dali extraísse.
Em Setembro de 1818, o 2º Visconde de Balsemão, Luiz Máximo Alfredo de Sousa Pinto, que então tinha residência na Ericeira, mandou lançar os fundamentos de um templo dedicado a São Luiz, Rei, e a santa Isabel, Rainha, no bairro de Santa Marta.
Este novo templo não chegou a ser concluído e era situado no terreno hoje ocupado pelo pátio da garagem de A. Gaspar, onde ainda há poucos anos, se viam os alicerces dele.
Junto ao local denominado Carreira do Navio, houve antigamente estaleiros de construção naval, onde se construíram muitas rascas e outras embarcações. Consta que a última embarcação que ali se construiu, foi a rasca Ericeira, pertencente a Francisco José da Silva Ericeira, que a mandou para o Brasil. A indústria da construção naval era antiga na Ericeira, pois os livros da Câmara, dos princípios do século XVI, já falam dessa indústria; e o foral dado à Ericeira por D. Manuel, também se refere à mesma indústria.
Também em Santa Marta, quase junto às furnas, existiu por muitos anos o Matadouro municipal, que aí por 1878 ou 79 ainda funcionava, sendo demolido pouco depois.
A indústria da cordoaria foi uma das mais desenvolvidas antigamente, na Ericeira, e a última que existiu era situada em Santa Marta.
Em 20 de Janeiro de 1898, um Alvará concedeu autorização a António Lopes da Costa, industrial em Lisboa, para poder explorar por tempo ilimitado, as águas minero-medicinais de Santa Marta, que o referido Lopes havia encontrado em um poço que mandara abrir numa propriedade que ele ali possuía.
Lopes da Costa adquiriu todo o terreno que constitui o actual Parque, e o mandou vedar por um muro, tal como agora existe.
No primeiro decénio do século actual foi construída em Santa Marta a primeira Praça de Touros que existiu na Ericeira.
Era construída em madeira e foi demolida há poucos anos. Ali se deram muitas corridas com grande concorrência, principalmente nas épocas balneares.
Em Outubro de 1929 a Comissão de Iniciativa e Turismo da Ericeira, coadjuvada pela Divisão Hidráulica do Tejo, deu princípio às obras de construção da esplanada ou avenida, circundando parte do bairro de Santa Marta, pelos lados do mar e sul.
A esta avenida foi dado o nome de "Avenida de Frei Fernão Rodrigues Monteiro", em memória daquele Grão-Mestre da Ordem de Aviz que, no ano de 1229, concedeu o 1º Foral à Vila da Ericeira.
Ultimamente foi transferida para Santa Marta a tradicional feira de São Tiago que, tendo sido, em seus princípios, ali instituída, como acima digo, se realizou depois no Jogo da Bola e na Praça dos Condes de Ericeira.
Há muitos e muitos anos que a Ericeira, com as duas pequenas povoações dos seus arrabaldes de norte e sul, constitui uma única povoação que tem, actualmente, um pouco mais de 1 quilómetro de extensão, e sempre em todos os tempos o conjunto das três povoações constituiu um único povo, a mesma gente, as mesmas famílias; todavia, quem observar bem, talvez note uma certa diferença entre a gente de Santa Marta e a da Fontaínha.
O Bairro de Santa Marta era, antigamente, constituído, como actualmente o da Fontaínha, por gente da classe piscatória. Hoje não. Em Santa Marta, hoje, poucos pescadores se encontrarão. São quase todos marítimos, o que faz a sua diferença.
As mulheres do norte da Vila (Fontaínha) são conhecidas no lado do sul (Santa Marta) pela antiga e pitoresca designação de: catueiras do cabo do norte. Ignoro a origem de tal alcunha.
No bairro de Santa Marta nasceu o nosso patrício Manuel Franco, por alcunha o cutêta, oficial da marinha mercante.
Inculto e um pouco rude, era todavia um excelente oficial náutico e muito amigo da sua terra.
Republicano ferrenho, dispendeu, segundo se diz, grande parte dos seus bens adquiridos nas suas viagens de muitos anos, em assuntos de política local. Foi Vereador, Provedor da Misericórdia, e exerceu grande influência política na Ericeira nos primeiros anos da implantação da República.
Foi comandante do navio Alagôas, da marinha mercante brasileira, e como tal, encarregado pelo Governo Brasileiro de transportar para a Europa o deposto Imperador Dom Pedro II.
Era com grande desvanecimento que Manuel Franco recordava, amiúde, esse facto, dizendo na sua pitoresca linguagem: Quando eu trouxe o Pedro para a Europa...... etc. O Governo brasileiro encarregou-me de trazer para cá o Pedro.....etc.
Apraz-me deixar aqui registada uma prova da dedicação que este homem tinha pela sua terra. Reconhecida, como ainda hoje, a necessidade de se construir uma estrada da Ericeira para o norte, Manuel Franco ofereceu, por empréstimo sem juros, o capital necessário para essa construção, e à sua custa mandou um engenheiro proceder aos respectivos estudos, levantar a planta e fazer orçamentos. A estrada não se fez, mas a boa vontade daquele ericeirense parece-me ficar sobejamente demonstrada com estes factos.
Para acabar estas notícias do bairro de Santa Marta, resta-me falar do culto de Nossa Senhora das Necessidades, estabelecido na respectiva Ermida.
As notícias que tenho sobre o assunto são, porém, tão complexas e tão contraditórias, estabelecendo tal confusão, que não me julgo habilitado por ora, a dizer coisas sobre tal assunto.
Pode ser que um dia chegue a deslindar a meada, e então, falaremos.

"Tia Maria Ásquinha"
Jaime O. Lobo e Silva
Novembro de 1932

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