segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

O Carapêta

A tia Carapêta era uma mulher viúva que morava no Bairro da Fontainha, com dois filhos. O mais velho, pouco depois da morte do pai, embarcou para o Brasil, assentou praça na Armada Brasileira, foi subindo postos, chegou ao de Capitão-de-Mar-e-Guerra, e até foi mais tarde Senador do Império.
Não se sabe o nome deste homem, mas diziam muitos marítimos ericeirenses que o conheceram no Brasil, e alguns oficiais da marinha mercante que por vezes o visitavam na sua luxuosa chácara que possuía numa das ilhas de Guanabara, que levava vida de grande senhor, servido por numerosos escravos e onde recebia principescamente os patrícios.
O outro filho da Carapêta, conhecido pela mesma alcunha da mãe, vivia com esta, que contraíu segundas núpcias com um pescador chamado Manuel Regalão. Este era um homem dos seus quarenta anos, forte e hercúleo, de modos ferozes e muito bruto, que tratava a mulher e o enteado, o pior possível.
Um dia o Regalão foi para a pesca no seu pequeno barco e levou consigo, como de costume, o enteado.
Chegando o barco defronte da Praia do Algodio, o Regalão disse ao rapaz que se lançasse à água e viesse para terra.
O pequeno Carapêta, apesar de saber nadar como um peixe, hesitou em cumprir a ordem do padrasto.
Este, então, puxou de uma enorme faca de que andava sempre armado e disse ao rapaz que lhe tirava as tripas se não lhe obedecesse.
Em vista de tal ameaça, o rapaz atirou-se ao mar e nadou para a praia. Chegado a casa contou o facto, que provocou enorme e justificada indignação em todo o Bairro da Fontainha; mas ninguém estranhou, pois todos conheciam as excêntricas brutalidades do Regalão.
Pela tarde, o tempo que estava explêndido, começou a mudar rapidamente e levantou-se grande tempestade no mar.
Recolheram apressadamente, todos os barcos que andavam à pesca, mas o do Regalão não apareceu. Continuou a tempestade por dias e todos davam o Regalão como morto.
Na madrugada do dia 1 de Abril de 1864, dois velhos pescadores foram correr a costa, antigo costume que ainda hoje pervalece, pois em seguida às grandes levas de mar, este arroja muitos e variados objectos que os pescadores recolhem, às escondidas da Guarda Fiscal.
Chegando os dois velhotes para lá da Praia de S. Sebastião, ainda com escuro, viram entalado entre duas rochas, o corpo do Manuel Regalão, completamente nu.
Horrorizados, voltaram apressadamente para a Vila, a dar parte do achado.
Já dia, foram as autoridades levantar o cadáver e verificaram que o Regalão, em completo estado de nudez, trazia cingido aos rins um forte cinto de couro e que, no forro deste cinto, se encontravam 42 libras em ouro.
Foi caso para dar os parabéns à Carapêta e ao filho, pois viram-se livres do brutamontes, e remediados com a inesperada herança.
Passados tempos, o Bairro da Fontainha andava aterrado.!!!
Era o caso que o Regalão, transformado num enorme cão preto, andava de noite, aos saltos por cima dos telhados das casas dos pescadores, quebrando-lhes as telhas, e levando o seu atrevimento ao ponto de espreitar pelos postigos, à hora da ceia.
Ouviam o forte ladrar e olhando para o postigo, viam a larga cara do Regalão, de barbas hirsutas, em cabeça de cão preto. Um horror.!
Tempos andados, a tia Carapêta deliberou mandar adaptar aos pés do filho umas grandes botas que haviam sido do Regalão.
Foi com o rapaz a casa do João Pataco, sapateiro, que morava na Rua de Baixo. Explicou ao mestre o que desejava, e o Pataco mandou ao rapaz que calçasse uma das botas para ver o que deveria fazer.
Mal o rapaz acabou de enfiar a bota no pé, caíu redondamente com um ataque, e começou a dizer coisas estapafúrdias e incoerentes, imitando os gestos e a voz do padrasto. Juntou-se bastante mulherio e logo ali a coisa ficou explicada: era o espírito do Regalão que se metera no corpo do rapaz; não havia mais que ver.
Mas então não haveria modo de se verem livres de tal peste, de uma vez para sempre? Ora essa! Havia sim senhor. Lá estava o Padre Capelão de Santa Susana, que era um barra para essas coisas.
Toca de mandar o Carapêta à consulta do Padre, acompanhado pelo célebre Arnaldo, marinheiro astuto e valente que, apesar de ter pouco mais de 20 anos, já havia navegado em todos os mares do globo.
Foram. O Padre Capelão de Santa Susana viu e ouviu, e disse-lhes que aquilo não era nada; que voltassem para casa, tendo apenas o cuidado de não regressarem pelo caminho por onde tinham vindo.
Obedeceram os rapazes e voltaram por caminho diferente do da ida; e quando iam a entrar na Vila, junto à Fonte do Cabo, o Carapêta caíu com um dos costumados ataques. Correu logo o mulherio que estava na Fonte, e o Carapêta, imitando a voz do padrasto, começou a dizer: "Eu não entrei em casa do Padre; fiquei cá fora, poisado numa moiteirinha de tojo, mas ouvi muito bem o Padre dizer que não viessem pelo mesmo caminho."
Coitadinho! Exclamavam as mulheres, aquele malvado não o largava.
Aquilo era uma desgraça. O Carapêta não podia andar embarcado nas rascas, porque o Regalão já por vezes o tinha atirado dos mastros e das vergas para o convés, onde o rapaz ficava estirado, sem sentidos, a deitar fumo pela boca, como uma chaminé.
Por estas e por outras, já nenhum Mestre de rasca queria o Carapêta a bordo do seu barco.
A mãe escreveu ao outro filho contando-lhe a desgraça do irmão. O oficial da marinha brasileira e depois Senador, mandou ir o Carapêta para o Brasil.
Parece que o Regalão, que nunca passou de pescador da costa, teve medo da viagem e não acompanhou o enteado às terras de Santa Cruz.
À sombra do irmão, o Carapêta por lá governou a sua vida.
Nenhum deles voltou mais à Ericeira, e ambos por lá morreram.

"Tia Maria Àsquinha"
Jaime Lobo e Silva
Outubro de 1932

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